30 de outubro de 2017

Castelo

Alguns instrumentos de trabalhos são pesados demais e difíceis de manusear. Penso no ofício da construção civil, que exige técnica, força e a habilidade de lidar com o futuro - esse lugar que posteriormente vai ser uma edificação em que habitará um sonho de empreendedor ou um lugar que alguém deseje chamar de lar. Um construtor trabalha em três tempos. Na elaboração de seu projeto na execução deste e o quão distante de manutenção ficar por mais tempo, para quem habita, melhor. Agora penso em mim como construtor. Aquele que elabora um projeto de um castelo, embora eu acredite que o sonho parede a parede não me remeta aos traços mais intrínsecos da medievalidade, sistema que ruiu na sua própria ganância, na separação de povos e na covardia da exploração. Na verdade, castelo é o que meus tempos de menino, minhas leituras da infâncias, os contos que trouxe quando aprendi desde cedo a sonhar emergem no homem que sou e imaginam a imponência que a palavra traz. Sim, eu gosto dos meus castelos. Apesar de que todos eles hoje desabaram ou mesmo restam apenas vestígios de abandono.
Não consigo me recordar de quando construí meu primeiro castelo, talvez tenha sido na escola. Mas a escola é apenas o vestígio do que sou e acompanho atualmente. Ela, agora, por força de leis e tamanha safadeza política vai se transformando numa oficina arbitrária para formar objetos quadrados que se encaixem e vão se amontoando até culminar no esperado setor produtivo, alimento do castelo de suseranos contemporâneos. São as muralhas que se oprimem entre si, são oprimidas por motivos de força maior, ressignificação de domínio, e protegem alguma autoridade medíocre entre concretos e cercas elétricas ou uma força de trabalho diminuta, de pé, olho vigiando o patrimônio alheio. A escola tem formado objetificações e projetando dramas cada vez mais complexos, sempre levados à frente até a hora de arruinar. Sabe-se lá quando...
Também tenho uns três ou quatro castelos onde depositei suor, sangue e o peso da minha consciência. Uma instituição, por ora, sem nome, mas costumei chamá-la de... na dúvida, melhor nem evocar o que não há mais nome! Será que usei insumos caducados, verbos arcaicos e o alicerce fora de padrão? Sei que nunca trabalhei com pré-moldados, essas questões jamais caberiam aqui e acolá da mesma maneira, nem costumei previamente transportar de um lugar a outro os itens de uma construção civil. Só me lembro de movimentar-me de um lado para outro levando em mim, sim, talvez o rei na barriga, meu estômago inteiro no fluxo, na ilógica do contrafluxo... já sei de onde veio este refluxo! São castelos desmoronados e mal digeridos. talvez na pressa da ocasião, razão pela qual suportei escândalos miúdos, somados um a um, uma catástrofe estomacal. Mastiguei com os dentes nervosos, engoli cada sapo travestido de príncipe, mitiguei todas as bruxas soltas, pestes, qualquer assombração feudalista.
Talvez eu aprendesse melhor como nativo a preferir oca. Castelos ocos caem com vento e com a chuva, mesmo com a melhor engenharia, com o avanço da construção civil, qualquer uma ideia nova e passageira não resiste se não passa a ser lar. Por enquanto, eu coleciono um bocado de derribamento e talvez precise mudar a Idade. 

26 de outubro de 2017

Dulce Zero

Oxítona em sua redoma de vidro:
Esther numa revisita meio século depois.
Açúcar no futuro, doce insumo dias atrás.
Fez da travessia com papel à mão
Contra amargo sumo bebido
Nos idos anos, sentada na cadeira,
Quando à beira do objetivo - seu livro -
Se lia ideia para ser, queira ou não queira.

Enquanto sua mãe cortava as mãos
Na lavoura dos patrões,
Ela lia; comia letras; bebia água.
Escorria no canto de sua boca
Uma gota de ódio, por que não?
Entre um suspiro e outro de ar e fuligem.

Foi a número um na doutrina.
Foi atrás de quem desse trela
À conversa, à quimera, o trabalho e o campo;
Dois cantos e muito para quem vivia
Numa senzala alugada por quase duas décadas.

Antes do prêmio, um mistério.
Negra como a noite, 
Meiga como açoite 
No âmbito feminino entre muitos homens
Que dominavam o corpus,
Ela produzia num tubo de ensaio
Como quem improvisa sem treino,
Sem piedade e sem oportunidade.

Dulce Zero, minha querida,
Vingarás os agres do agreste
Do latifúndio e da cana caiana,
Dos donos da cana, dos cabras da peste,
Dos mercados consumidores,
Dos farsantes amores...

Flor da minha imaginação,
Minha botânica e minha menina favorita;
Planta de oração doce,
Perene herbácea sem tronco 
Com raiz rizomática...
O jardim gramíneo todo de volta
Para ti.
Toda a sedução das formigas,
Na guerra,
Por nós.

25 de outubro de 2017

Quando nasce o bailarino

Buscava incessantemente falar pelos cotovelos, dizer a todo tempo alguma coisa sobre algum assunto toda vez que não queria escutar aquela voz do outro lado da parede.
Havia uma barreira que dificultava entender; não conseguia captar um verbo sequer, mas sabia que ali do outro lado havia alguém a dizer e, às vezes, até cantar. Mas não entendia. Não percebia e fugia daquele ruído constante com agressão de quem falava mais alto para vencer a competição de entendimentos. 
Na hora de deitar, o silêncio era mais perturbador de todas as horas. Punha o fone de ouvido, para escutar... sei lá, gemidos, música, piada, desenho... até a hora que o sono chegasse e não tivesse tempo de novamente experimentar o que escondia aquela parede de transtorno. Dormia como um deleite de um fino fio de lã branca a ponto de arrebentar, todos os dias, com a força do som. Até de manhã, quando ele partia, era a hora de acordar e novamente entrar na corrente de elos ligados por um discurso político, um papo de otário, um grito ao sol, ou, se chovia, uma canção desafinada na voz para embalar a queda dos pingos d'água.
Tomava qualquer inciativa, depressa, sem pensar: ia... em frente ao mar, ouvir as ondas se debruçarem sobre a areia quente enquanto criança brincavam, construíam seus castelos até vir a maré alta e arruiná-los. Ou ouvir os cães latindo felizes ao se juntarem ao coro infantil de uma brincadeira na cidade litorânea.
No caminho entre a casa e a praia, o fone de ouvido plugado ao telefone repetia a mesma canção de três décadas atrás e quatro casas regressivas no jogo de tabuleiro de ir e vir até chegar ao pódio.
Chegada. Chegado a casa, direto ao banheiro, o barulho da água do chuveiro escorria e novamente a parede, esconderijo de canos de pressão que lhe jogavam toda a força do banho, também ali se ruía o mais temível. Às vezes, a solução era cantar amadoramente um lindo refrão do corpo pagante ensaboado, com espumas de limpeza, alvura necessária para desinfetar a maresia toda grudada na pele morena clara. Queria até do friccionar da toalha enxugando o corpo para o próximo ato, escutar o mínimo atrito entre pano e pelos, entre peso e pano, entre pano e pano pra manga desse contínuo caminho até o barulho mais poderoso.
Desejava trovões fortes, até mitos da tempestade, desejava apenas; mas o verão se aproximava e a existência tempo nublado parecia a cada dia desistir de ajudar.
Zumbido, ruído, barulho, ringtones, apocalipse, trombetas, corais de anjos, demônios, insanidade, qualquer transe, qualquer trânsito caótico, buzina na esquina ao engarrafamento, qualquer, mesmo, que fosse a qualidade de som, que fosse bem-vindo.
Até o dia em que pegou o martelo e detonou todas as paredes, e só existia o chão, que oportuno ao som que queria, provocativo, insinuante, testar o último recurso de se esconder, agora embaixo de tudo, para sussurrar (que fosse), mas deu sorte de saber, que estar em pé, pisava o inimigo mais ruidoso de todo universo. 
Foi, então, que se viu sem estar cercado, o inimigo que estava ao lado, agora pisado no chão debaixo de sua sensação mais feliz: por cima, na estreia de seus novos sapatos; um sapateado improvisado, produzia a dança mais esquisita. Sem palco, sem público, mas no movimento do corpo vitorioso que venceu o som tenebroso, quando nasceu de novo. Fez-se um bailarino e calou. 

18 de outubro de 2017

Mrs. Sylvia Plath

Todo cheio de vincos dos derradeiros dias -
Marcas, dissenção, sobreposição, envergadura -,
Esses remendos que coseu dona Sylvia
Com letras e sulcos - nossas identificações.
Um beijo dela toda noite em minha testa,
E, de manhã, esta derivação regressiva impronunciável
Não foram o bastante para me levar daqui,
Mas intermitente febre e pujança que,
Durante o sono, fizeram me encolher na cama
E me sentir novamente no útero quente de outra dona.



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I am absolutelly full of creases by the last days -
Marks, dissent, overlap, wingspan -,
These patches that sewed Mrs. Sylvia
Using letters and grooves - our identifications.
A kiss from her every night on my forehead,
And, in the morning, that unpronounceable back-formation
Were not enough to get me out of here,
But intermittent fever and vigor that,
During sleep, they made me cringe in bed
And feel myself again in the warm womb of another mistress

12 de outubro de 2017

Prazo

Do tipo que apostou na preponderância,
Como sempre, e quase cansado de esperança,
Fosse apenas uma falha, fosse apenas uma...
Foram tantas outras em seguida, de passos em pressa,
Já não interessa um por cento de quase nada.
Foram tantos outros passos em direção oposta.
Mas, para quem aposta, ainda acredita
Que a vida leva e traz o que deve ou não ser.

Foram mais e mais metades ou partidas de ócio
Do tempo que me deram ossos de tempo em tempo,
Quinze minutos antes do sono ou alguns segundos afins
Desgastados pelos ventos do norte, e fragmentos
Feito um limite a preencher por várias vezes,
E pouco de cada vez... não bastasse o restinho de tudo,
Seria mais cedo ou tarde viver sem saber.

Contudo o pensamento precisa ser dito,
Sabido é particípio inicial de alguém - coragem! -,
Ainda que doa, ainda que nada seja doação completa,
Transborda a meta do teu medo arredio de entrelinhas, só elas...
Quanto aos meus termos que conclamam desejo,
E fúria desde quando não fosse logo tão longe de mim,
Não fosse a opção incerta a ausência de dúvida,
Estaria certo de que fascínio era a medida exata.

Mas quando se encosta na paciência cômoda
De teus intervalos, e se incomoda com brevidade,
Depois se irrita com demora, e não se comemora
Importância coadjuvante nos lugares remotos,
Nos passados minutos após a hora marcada...
Marco no relógio para que o ponteiro passasse
E transbordasse instantes imprevistos,
Enquanto tramo texto qualquer - preâmbulo pronto-,
Para, em certo ponto, tremer ao desenlace.

5 de outubro de 2017

Diz que Santa Luzia protege

Não é meu dom de ser sozinho, de me sentir rodeado de vinte e nove subterfúgios sorridentes e um pouco mais de arrependimentos instantâneos que me farão aplaudir a derrocada de trinta e cinco tentativas estúpidas de querer-bem-e-maldizer.
Tenho aprendido bastante a cada olhar lançado ao joelho esculhambado de tanto ir ao chão com a a gravidade que me lançaram com a força motriz de jogar três partidas de indecisões. Já estou velho o suficiente para saber que as coisas andam, como as coisas mudam de lugar, enquanto eu me desloco entre sentir a falta de alguém e tentar alcançar o resto de mim que espalhei nas terras que plantei sementes de felicidade. A tristeza passa, sempre, algum dia; a alegria volta pela manhã quando acordo querendo beijar o meu travesseiro que na última noite foi meu inimigo mais cruel. Eu faço as pazes com lençóis encharcados de suor e sonhos bonitos que acalentaram o espaço vazio que separa, de mim, o resto de tudo. Vou jogando dentro dele pétalas secas do verão que nunca vi ao lado do meu... nada.
Quando à míngua em desertores dias, que ficam incompletos: falta o ar rarefeito que foi prenda, que foi peça pregada em sentido contrário a tudo o que ia numa direção só num dia desses em que o tempo nem era assíduo nem era sumido.
Tantas desculpas para sufocar. Tantas mentiras para sobreviver e depois assassinar numas meias palavras... Era o prenúncio para insinuar e depois se esconder nos vãos do muro que se levantou entre o dia de hoje e o dia em que o mar se abriu e mostrou o penhasco onde uma mão me empurrou e me disse gestualmente: aguenta esta que a culpa é tua. Foi ali embaixo que meu joelho me fez sentir mais uma dor, que me fez lembrar que estava vivo, mesmo todo esculhambado de sangue e um texto abandonado ao critério de alguma arrogância.
Houve uma carta que tarde chegou, nem sei se ela partiu com verdade de lá; algum remetente no mundo há de dizer que havia, mas custa lê-la. Algum escritor há de dizer que escrevia, mas nunca li. Algum viajante há de dizer que o destino está elaborado, um roteiro que passa por rincões de sempre, oportunos, repetitivos, mas nunca fui anfitrião. Algum filme pode entrar em cartaz, mas já estarei cego outra vez.