28 de novembro de 2017

Estado de Alagoas em matéria física

O futuro parece ter chegado um pouco tarde por aqui.
Nas ruas que ostentam seus vãos pedindo atenção a todo instante, para que se evite uma queda, um desatino. São passagem para quem tem pressa de chegar ao porvir e juntar seu patrimônio muitas das vezes cheios de arrogância - e é inexato - e uma característica cozida a vapor sob este sol que todos os dias ferve a cabeça de qualquer indivíduo com ou sem fé. Entre um Audi ou uma Mercedes, e vários carros populares comprados à época em que o Poder Público dava o IPI zero, sempre há uma carroça, com um ou dois, talvez três homens e mulheres a dominar um animal que puxa sua engenhoca de madeira sobre duas rodas. Parece-me cru. Parece-me o estado mais primitivo da nossa inteligência e soberba, também, por sacrificar bichos em nome de um ganha-pão. Eles carregam em seus veículos à tração animal, ajudado a rolar sobre estradas cheias de buracos, e pegar a velocidade com a sua própria pressa, com seus parcos recursos; eles e elas querem também ao futuro chegar, a algum lugar, transportando metralhas ou a desprezada sabedoria diante da tecnologia alemã, estadunidense ou outro gentílico que inventou seus automóveis, em certas ocasiões, assassinos.
Cada estrada está praticamente esmagada a cada meia década por uma nova construção que, por cá, muitos chamam de avanço. São escola bilíngue, consultório, apartamento com acabamento de primeira linha (mármore ou granito) e até casebres, que estão distante da brisa marinha, onde nós, o povo maceioense, costumamos chamar de periferia. Mas há uma só verdade, seja ainda de barro, seja pavimentada, as ruas são as artérias coagidas por tecido concreto, com esquadrias de alumínio ornamentados com os mais variados vidros e espelhos. Espelha-se no moderno sempre o dano venoso onde correm os passageiros, os condutores e até um menino que escolheu o lugar mais perigoso para jogar sua bola. Tecido dinâmico de uma cidade que se movimenta noite e dia... para onde? Toda a gente cozendo na maior parte do ano sob o mesmo sol que queima as cabeças ateias, cristãs, de matriz africana ou sem matriz, totalmente sem identidade local, querendo ser igual a outrem, bem além dali. Daqui. Em qualquer lugar sempre há um embrião gourmet, com prepotência universal, com boçalidade cosmopolita. Surgem espaços onde alimentos fornecem ao fetiche a intenção de transformar esse presente disperso naquelas vielas ou nas avenidas da moda uma torre de babel gastronômica, enquanto o homem que rege sua carroça do passado pode parar para tomar um caldo de cana com um pastel em um ambulante, de um mercado informal. São contradições do dia a dia, sob o mesmo sol que torra a cabeça da linda loira que saiu do salão de beleza com os fios de cabelo cada vez mais transgênico, cada vez mais fenotípico. Ela passeia sua beleza feminina da porta do local até o seu carro sei lá pensado onde! Ela veste uma grife italiana, ela é alagoana, como eu, mas ela está cozida como todos nós. Ainda que ela se vista com detalhes em "filé" ou "singeleza", de uma outra alagoana aí, popular entre os astros de constelação televisiva; ela continua cozida, enquanto, no Pontal da Barra, as genuínas mães ainda ensinam suas filhas o que é permanecer crua, andar na rua de cabeça erguida, sentindo a brisa lagunar de Mundaú.
Maceió tem em suas águas o paraíso de um slogan perene até o dia que o sol que ainda cozinha nossas cabeças faça mudar o estado físico da matéria. Já que se evapora o que fomos em nome do que nunca seremos, ainda que sigamos cozinhando os miolos com o olhar para o Hemisfério no qual jamais coube um pouco de nós.

22 de novembro de 2017

O nome dela

Lembro-me bem do dia em que eu estava no salão, onde Sônia, a cabeleireira, interrompeu o corte da tesoura para eu atender àquela chamada. Era minha irmã que trazia a notícia de que estava grávida, acabara de saber. Não contive as lágrimas, que Sônia e meu amigo Marcos presenciavam no estabelecimento no centro de Campinas, em São Paulo, onde eu morava.
Quando Ana Beatriz chegou ao mundo, eu estava em Maceió, comemorando com a família a chegada da minha primeira sobrinha. Acho que foi um dos momentos mais especiais da minha vida, eu nunca tinha experimentado esta sensação tão difícil de descrever com palavras.
Já se passaram mais de quatro anos, e acho que é o tempo determinante para escrever o quanto de significado esta vida tem à minha, da forma mais simples, sem lapidações, apenas com o que minha cabeça, neste momento, consegue formular. E por que não dizer que é um exercício de gratidão, sentimento reforçado a cada dia pelos motivos que só eu sei que existem para que jamais me esqueça desta presença. Além dos agradáveis e incontáveis momentos em que ela fez de vazios espaços cheios de vitalidade, de agonias fez apaziguarem instantes de dor e de perda de rumo deu-me a direção correta das minhas melhores e mais deliciosas escolhas.
Preciso lembrar-me do desenho esquisito no papel sobre minha mesa, ao chegar a casa, ter regalado de essência um dia cansativo e que parecia sem fim. Preciso também catar na lembrança qualquer singelo passeio que fizemos pelas ruas vizinhas a troco de nada, de passar o tempo e de fazê-lo tudo. Buscar no álbum da memória a imagem mais bonita que carrego comigo, quer meus olhos abram de atenção redobrada ao pânico causado pelo medo nesses dias insanos, quer meus olhos fechem para derramar lágrimas quando me sinto fraco nesses dias onde a força às vezes entra em colapso e diz... melhor não dizer. Muito melhor é encher meu peito de ar como quem respira o cheiro do seus cabelos loiros escuros e fixar o olhar na imaginação desses olhos verdes, tão lindos, que às vezes penso ter uma boneca para brincar, mesmo que o mundo diga que meninos não brincam de bonecas.
Quanta bobagem andei pensando, quantas consultas eu estive procurando para encontrar, com ajuda dos tais doutores, uma solução imediata para o que quatro anos já bastam por sentir-me curado no abraço dela. E quanto de mim se foi nos intervalos longos enquanto me fizeram triste e ela estava tão acercada, mas eu perdia meu tempo me distanciando daquele amor que só pedia carinho e atenção.
Não sei se por negligência minha, da que me fez tolo, mas compreendo tais perturbações que venho tendo, pois elas diminuem quando volto meu olhar sereno e firme ao âmago que nasce no ponto fixo, seja na parede do quarto ou na almofada recostada sobre a cama, esperando o dia em que ela volte aqui para contar as coisas de uma menina.
Fico a pensar se nesta idade que ela tem agora, nesta etapa da vida, é melhor do que viver à desconfiança do homem que mente e engana, e descobrir que as coisas não são exatamente como parecem. Que a imaginação é apenas um mundo de sonhos infantis que podemos criar livremente, embora existam à espreita interesses mais hostis querendo penetrar a camada mais frágil e chegar ao meio para vender qualquer coisa: uma ideia, uma situação, um brinquedo... Fazer lucro sobre a inocência de uma criança deveria ser crime hediondo, mas há leis em quais não posso intervir.  O tempo vai passando, como para todos nós, e logo ela descobrirá tantas duras verdades, como para mim foi choque, chegou a ser queda, física e mental. E para este tempo só projeto meu sonho de estar ao seu lado a contar sobre coisas minhas, que sua idade ainda não permite entender, até que ela saiba que amizade é algo bom, maior que nossos laços consanguíneos. Nesta ocasião, se a vida me permitir, ela saberá o quanto foi determinante o amor que nós construímos a cada oportunidade convivida e partilhada, sobre as quais foram erguidos tantos porquês à afeição rija, mesmo que amoleça meu coração só em pronunciar o seu nome.

20 de novembro de 2017

Lázaro de Betânia, Provença ou República dos Palmares

Uma conexão no Aeroporto de Marselha, duas horas, e sem cigarros no bolso. Um café e um croissant; depois, uma pequena caminhada até o outro terminal em busca de uma loja de tabaco e uns minutos de distração. O coração de quem, confundido com um leproso, tornou-se pobre numa Provença de riquezas marítimas, a cruzar a fronteira pelo céu de mendicância e saciedade. Sou Lázaro refugiado na intermitência do amor que se locomove entre o túmulo e a vida asséptica, um banho de sol e uma voz para ressuscitar do lugar em que faz de Betânia um pequeno espaço num oceano imenso de incertezas.
- Vem para fora! Levanta-te e anda...
As muletas que suportam o peso da minha consciência como quem intercambia de um posto a outro, entre são e salvo e um morto qualquer, confundido com alguns indigentes. Quem se tranca numa caverna, adormece ou morre, ou se fecha o armário das relíquias indecentes, ora de grande valor, ora tão sem nobreza como bilhete de companhia aérea low cost
O tempo é confuso, entre as tapas sevilhanas e os tapas universais - dores comuns a quem se deixa bater forte até cair, sem equilíbrio. Oferece outra face e guarda os estalos a cada golpe da ocasião. Conto "um", "dois", três"... quatro dias a cheiro mórbido de um lugar escuro onde descansa um corpo cansado e uma mente sadia, oscilando, mas sadia, ainda. Equilibrando a emoção na ponta do pé; e dos pés à cabeça, continuo sendo o amor daquela canção de 1971. 
Eu acredito, mas já não tenho fé. É tanta mentira que a morte parece se achegar todos os dias ao pé e subir às pernas num movimento de uma lagarta, em sua escalada de sobrevivência para se alimentar, deixando rastros de morte no verde que deu cor à vida e foi o xilema que fez chegar a esperança a todas as partes de um ser. Confundo-me com o estado vegetativo e a promessa do milagre, nesta cidade que jamais verá um morto ressuscitar. Ao contrário, estatística de violência faz levar vidas tão cedo, seja por fatalidade ou negligência de um pronto atendimento sonegado à população. Cá estou, na terra de Zumbi dos Palmares mas comandada por oligarquias terríveis, coronéis que mudam de profissão ou de partido a cada quatro anos.
Desde a América do Sul à Cisjordânia, e sim, aquela do Mar Morto... Desta mistura de exodus, o balsâmico, lenitivo, até o Sul da França, na costa, a sentir o cheiro de lavandas sobre corpos mediterrâneos, transeuntes, em apenas duas horas, comendo aquele croissant frio e bebendo o café forte, para despertar meu corpo para mais um voo, que melhor caísse sobre os Pirineus, do que encontrar farejantes fariseus remodelados e à espreita da minha má sorte por andar e querer amar, um pouco mais, ao dezembro último andaluz. 

16 de novembro de 2017

Vertical

Dominar a arte de equilibrar-me sobre o fio da meada,
Tecer caminho e camuflar meandros de um ou outro tombo
Na passagem por dias longos,
Pois que a longevidade, a mim, nunca foi um forte;
Mas chegar perto do horizonte é a razão por que todos os dias
Há nesta posição o maior prazer: vertical.