18 de dezembro de 2019

Sol em capricórnio

E se eu lhe der ousadia, se convier um pouco de ternura - mas olha que coisa! - não confunda as coisas. Há tanto numa mistura grande de ancestrais e determinismo do meio. Fica até metade de mim pendendo a outra metade inexistente, como dois fossem inteiros; nunca são, entretanto.
Partes divididas entre trópicos, um Equador partindo ao meio, e entre nós há fronteiras de tempo, espaço e o magnetismo que no passado confundia até sábios pagãos...
Desde que me encontrei errado, joguei a culpa em si, no universo, mas eu sempre estive intoxicado, sob efeito de psicotrópico de capricórnio. E perdoei. E fui perdoado.

22 de novembro de 2019

Dinâmica social dos movimentos dos corpos

Há um tantinho assim de insalubridade no olhar que julga, eu sei. Danifica, às vezes, sem nenhuma cautela, sem a responsabilidade com a coordenação entre as palavras ditas - sejam claras como o som da fala, sejam pelo arco que se monta e dispara a flecha retínica. A gente fica com medo do olhar de reprovação; quando não se apavora apenas com uma cobrança advinda do bem ou do mal, digo, por bem-querer preocupado ou apenas pela necessidade de tirar de outro o que não se encontra em um: o si mesmo.
Vai se culpar por morte da bezerra, por tendências veganas, até querer lançar a fome. É muito estômago em vez de mente. É mentira maldita sobre nutrição em todas as suas belas formas. Muito querer tirar o doce, salgado, azedo, qualquer paladar da boca de uma criança ou idoso, ou mesmo de assalto a alguém que consiga se defender. Haja fome no mundo!
E nesses caminhos que passeiam por todo corpo e suas atividades, por último, vão querer levar a alma. Talvez ainda não acreditando na existência dela, coisas que não se tocam, o toque ser mais profundo por meios mais hediondos. O mundo está cheio de ladrões das coisas que se movem e daquelas que param no sentido de contemplar a paz. Desejando sempre dizimar qualquer resquício de uma existência, muitos nem se contentarão quando o repouso silencioso do lugar tranquilo que, por acaso, tenha uma pedra ou uma madeira com o seu nome, até ali vão querer subtrair. Sirva isso para o fogo fazer numa noite fria ou vender no mercado opressor. A gente também lida com pedras e algumas valem mais do que o teto inteiro de tantos que só ficaram com descartáveis papelões.
Quando isso culminar no acúmulo de pedaços de coisas de tantas outras subtrações, a soma de todo o patrimônio talvez cause desconfiança, mas provavelmente pela proporção e a experiência em crimes perfeitos, só restará passar adiante porque o caminho de toda a gente é o mesmo, sem luz, sem túnel, onde acabam todas as coisas. E, portanto, as tentativas de caminhos à brevidade desta situação farão dos atentos a esse movimento um energia molecular, talvez dispondo de uma terceira lei para justificar todas as direções de forças. Quem sabe, assim, se reconheça o estágio que passou pela inércia, ultrapassou o princípio de superposição. E como uma instância terminal, quando não cabem mais seus recursos, impossível tentar unir o que já esteja em sentidos opostos.

14 de novembro de 2019

vitamina póstuma

não me venhas dizer que toda manhã esta inquietude silenciosa aos ouvidos possuídos de muitas histórias contadas faz de mim mais ou menos um homem de poucas ou nenhuma palavra
sabes que encaixotados há um dicionário de aptidões, uma festa com rojões e calos
estive calado de atrito
todo grito engolido com um só gole de derradeira vez e o pouco que resta de quase tudo que se foi são fumaça de muito tempo
vês que há cinzas ou cheiro de
queimado?
há muito que não se liquefazem
pois já se derramou tanto leite fora
pois já se bateram tanto dois - ou mais
não tem mais açúcar, nada doce, não é amor
só um liquidificador quebrado com o copo por transbordar do significado de emudecer
é avaria, então deixa molhar outra vez

10 de novembro de 2019

Turismo de plástico

Há dois anos, estava estampada a manchete, nos principais veículos de comunicação, que Maceió ganhava o “Parquinho Sustentável”. Depois da inauguração do primeiro equipamento, veio outro, outro... Assim, a ideia foi ganhando força com a parceria feita por empresas de alguns setores que fornecem insumos desta prática urgentemente necessária. Talvez haja, atualmente, quatro ou cinco deles na cidade. Os bairros litorâneos ficam mais esquipados e receptivos para turistas. A criançada local também tem opção de lazer com vista ao mar.
Equipamento bonitinho, feito em madeira sustentável, resistente e tratada. Material bom: de eucalipto ou pinus. Tem até placa fotovoltaica, para o usuário, caso necessite, carregar o telefone com eletricidade diretamente produzida pelo sol, fonte de energia limpa. Olha que maravilha!
Em uma das reportagens, um turista de Brasília, que tinha trazido sua filha de quatro anos para brincar no espaço, elogiava a iniciativa:

– “Eu acho bastante importante essa atitude da Prefeitura de poder propiciar essa diversão para a criançada. Espero que esse espaço se mantenha aqui. A gente percebe que são equipamentos novos. Essa iniciativa de trazer as crianças do meio eletrônico é de suma importância. Ter um espaço para gastar energia é uma questão de saúde”.

Depois de um depoimento desses, roga-se à sociedade colaboração; torcer para que se conservem os parquinhos. Criança brincando, com sorriso largo, é uma coisa, mesmo, linda. É memorável a experiência da felicidade também em terras forasteiras. Levar na bagagem uma recordação como esta do Paraíso das Águas pontua a cidade em requisitos de atrativos turísticos.
Como já passei da idade de brincar em parquinho, sendo nativo sem filhos, vi-me sem utilidade neste ambiente, mas apoio a iniciativa como tantos outros cidadãos, com ou sem filhos. Não caibo num daqueles balanços ou escorregadores, então nem me atrevo a usar o espaço, mas em algumas caminhadas na orla, aprecio um presente dado à terrinha.
Num desses dias de sol, caminhei pelo calçadão da praia de Ponta Verde e parei para observar atentamente o parquinho, que estava vazio. Perguntei-me, com inveja por não poder voltar ao tempo e me jogar naqueles brinquedos, se meu momento era mesmo outro. Confirmei, fugindo ao sonho da máquina do tempo. Mas, ora, tinha aquele marzão, até mais lindo que o tal parquinho! Ele me convidava ao banho; caminhei, descalço, ao encontro das águas mornas. O parquinho foi ficando para trás e a areia quente e branquinha da praia era o aperitivo do entretenimento, digamos, mais adulto; aliás, sem restrição de faixa etária. Dois passos à frente: uma sacola plástica, alguns copos descartáveis e embalagens de salgadinhos dançavam ao vento do litoral. Não sei se queriam mergulhar nas águas dégradées de azul, mas torcia para que não.
– Não façam isso, por favor, turistas desagradáveis! – uma voz presa, não estava atrás, como o parquinho, nem à frente, como o mar convidativo. Estava dentro. Gritava a voz que os descartáveis e desagradáveis turistas não podiam ouvir por dois motivos: a voz ficava presa no meu interior; e esses viajantes, do lado de fora, sabe-se lá da procedência, também não conseguiriam ouvir, pois que bailam ao som do uivo do vento. Sem vida, sem precedente, sem nenhum registro; talvez nem constem nas FRNHs (Ficha Nacional de Registro de Hóspedes) documentadas nos hotéis, aqueles mesmos parceiros na construção dos parquinhos sustentáveis.
Talvez aquela extinção de vida tivesse viajado, ou mesmo descido a ladeira Doutor Geraldo Melo dos Santos, se vieram da parte alta. Caso tenham residência por ali, à beira-mar, poderiam ter vindo das barracas da orla ou dos hotéis, aqueles mesmos parceiros na construção dos parquinhos sustentáveis.
Meu dia de folga tinha se tornado já uma aula de sustentabilidade in loco. Na minha bolsa de plástico, estavam filtro solar, uma garrafa de água – em embalagens plásticas –, uma toalha e quiçá duas peças de roupa. Matei a charada, fiz-me refém de uma vida cercada de polietileno e, ao mesmo tempo, tornei-me um criminoso em potencial ao ensejo do descarte inapropriado. Minha consciência não me faria ser ambíguo em duas funções tão antagônicas. Descartaria, certamente, no lixeiro, contudo, após a responsabilidade parcial, que fim teria esses meus objetos, além de deixar de ser parcialmente meus? Seriam novos turistas nas praias, filhos órfãos de uma responsabilidade de consumo, pequenos pesos mortos; quando ressignificados e unidos, terríveis algozes consumidores personificados do turismo de massa. Produtos, sim, mas do conjunto de ações nada sustentáveis. Foi o insight para confluir todas as ideias em torno do marketing ambiental. Acabou-se, pelo menos ali, a praia. Ficou turva, suja, sem sentido. Ficou o resto do dia de folga para descansar, sei lá, da semana de expediente e da folga em conflito.
Outro dia, então: luz do sol nascendo para todos; alimento que sustenta; higiene pessoal – banho de espuma e água fria jorrando numa cabeça quente na manhã que estava apenas começando. Uniformizado tal qual um profissional de turismo, com barba feita, cabelo bem penteado, melhor apresentação pessoal possível. Apressei-me até a parada de ônibus para apanhar a condução. Lá vinha o trabalho, o que escolhi por afinidade, por questões, também, de consumo – Quem nunca? – Posto dado, oportunidade, exercício automático em facetas de ossos do ofício: eu, recepcionista de hotel.
Dia de trabalho, como quase todos da escala seis por um, é cheio de funções. Costumo operar um sistema, ser cortês com hóspedes, passar informações, fazer vendas e estar sempre pronto para a solicitação porvir. Sorriso sempre na cara. Cara velha, cansada, mas sorridente. Tinha um turista que pediu o kit de higiene pessoal (vinha creme dental e escova de dente; no outro pacote, uma bisnaga de espuma para barba e um aparelho de barbear descartável). “Disponha”, era a resposta mais breve e educada quando um cliente agradecia, com a pressa corriqueira, quando se lembrava da palavra “obrigado”. Este, por acaso, lembrou-se. Sem julgamento, espero que faça parte do seu hábito, em todas e quaisquer circunstâncias, ainda que em correria.
Ao lado do meu setor, havia uma loja de conveniência. Era um hotel express; serviços essenciais inclusos na diária comprada, com algumas cortesias da casa, como aqueles kits de higiene pessoal, amenities. Outros serviços, como os produtos da loja de conveniência, eram on demand, preço inserido na fatura, podendo pagar no check-out. A gente importou standards, muita tecnologia gringa, e também veio, com ela, a sua língua.
Na lojinha, como chamamos intimamente, havia salgadinhos, comida congelada, bebidas variadas, guloseimas doces para pegar, pagar e comer quando quiser. Ao lado da máquina de café, tinha uma cortesia do hotel: pratinhos, talheres, canudos e copos descartáveis, tudo de plástico. Ah, não posso me esquecer dos guardanapos de papel! No entanto, acredito, eram quase, à exceção da comida e da bebida, 98% feitos de plástico. Fico embasbacado como a lojinha é rentável; os turistas, às pressas, antes dos passeios, das saídas, ou mesmo quando chegam com muita fome, sempre passam na lojinha para pegar, pagar e comer quando quiser. Foi o que fez a senhora paulista, como consta na sua FRNH.

– Tem o quê aqui? Estou faminta! – já abrindo a porta e esquecendo-me e esquecendo-se da gentileza de ouvir minha resposta. Era a pressa, fome.

Agora me deu um pouco de vontade de julgar, pela educação; aliás, a falta dela, e a insignificância dada à minha pronta resposta que já começou e ali mesmo parou no verbo:

– Tem... – (vácuo habitual).

Era, assim, uma das próximas bailarinas à brisa marinha nas manhãs. Aquela embalagem de plástico que ela apanhou na lojinha, talvez largue na praia, bem em frente ao parquinho sustentável. Pode ser que se largue da vida, que seja a próxima extinção, sendo também de plástico. Ali, junto aos outros viajantes e aos locais – tanto os que descem pela ladeira Doutor Geraldo Melo dos Santos, quanto os que moram nessas transversais e paralelas das vias litorâneas –, ela circula; eles fazem um círculo danoso, até que caiam no mar. E isso se sucederá por dias e dias até que este hotel talvez seja mais um parceiro na construção do próximo parquinho sustentável.

30 de setembro de 2019

Huambo, 2022.

Estive sentado por duas horas debaixo de uma árvore, no Jardim da Cultura, à sua sombra, ao calor miserável, quase cozinhando, observando as misérias invisíveis da guerra, agora, após a paz. Eu vi ovibundos, filhos bantus de muito tempo. Quase duas décadas e eu não tinha aprendido nada mais do que olhar para o meu umbigo e olhar para fora ou ao redor meio que irresponsável: um observador imprestável sentindo ainda o corte umbilical. Duas horas e um minuto, este tempo, e, finalmente, fizeram todo o sentido - o irmão me dizia amiúde - os efeitos da solitude.

20 de setembro de 2019

Ficou faltando o abraço

De manhã cedo, o despertador em cima da cabeceira da cama soltava um estridente "bom dia". Não tinha cinco minutos de soneca que coubesse na agenda e lhe desse tempo suficiente para terminar aquele sonho maravilhoso das férias em uma das 115 ilhas paradisíacas de Seychelles. Raquel não conseguiu mais uma vez mergulhar no mar. Chegou perto desta vez. A água ainda tocou seus pés, mas o alarme interrompeu o passeio completo. Café em alguns minutos, enquanto tirava a preguiça do corpo embaixo do chuveiro, pronto. A roupa separada em cima da tábua de passar que já fazia parte do mobiliário para o final daquele dia. Veste-se. O gole de café; a mordida no pão dormido. A comida do Nino solta na tigela. O olho no relógio: o ônibus estava a dez minutos da sua parada. Um bochecho rápido pra tirar o gosto amargo da pressa. Corria, subia no coletivo lotado. Chegava ao escritório, uma pilha de papéis para organizar. Olhos atentos, leitura infinita. Acabou. Uma hora de intervalo para esquentar o almoço e dá uma olhada na vida da Maria, do Paulinho, do Tonho e da Silvia - pelo telefone -, enquanto mastigava a sequidão do alimento que já cansou de choque térmico. Comida estrebuchada: da geladeira, do sacolejo do pote na bolsa, depois na geladeira da firma e, finalmente, o aquecimento em razão da radiação eletromagnética de 2.450 MHz. Depois dali, lavar a boca, os dentes, a cara, a coragem, tudo limpo do pescoço pra cima. Retocava o batom. Novamente, a bancada e dois terços dos papéis sem carimbo, sem revisão, passavam pelos olhos atentos em buscas das imperfeições tão indesejadas pelo homem lá de cima, aquele do "bom dia" tão curto que tinha o adjetivo engolido com a velocidade do almoço no refeitório.
Outro sonho permissível nesta parte do dia, era que os ponteiros do relógio rodassem com a velocidade do almoço, do "bom dia" do Sr. Heitor, do banho da manhã e da impaciência do telefone que a todo tempo não parava de tocar. Às vezes, ligação por engano; na maioria, não: eram prazos e cobranças e mais pressa, a mesma desejada para que o relógio marcasse as seis em ponto. Seis em ponto. Dezoito, melhor dizendo. O suspiro que só vinha de vez em quando, na copa, com os goles de água ou café, ou a vontade em última instância de ir ao banheiro para não retardar o compromisso.
Compromisso às dezoito e quarenta e cinco, no mercado da rua transversal, para comprar a ração do Nino e uma porção de coisas que, numa passada de olho dentro do armário, faziam falta. Não deu pra comprar tudo no compromisso de hoje. Duas sacolas nas mãos: melhor para o bolso e para o peso diminuído no caminho entre algumas esquinas, o ônibus de volta para casa.
Raquel sabia que tinha pouco tempo à noite. A louça pedia limpeza. O Nino pedia comida e limpeza porque cagou a casa inteira sentindo falta dela. A roupa para passar, na tábua de passar que era mobília permanente no cantinho da sala. Saltou do ônibus às pressas. Que mulher apressada! Enganou-se e saltou três paradas antes porque a soneca interrompida pelo solavanco do coletivo fê-la acordar com medo de ter passado muito além de casa, mas muito antes de chegar na tão sonhada Seychelles da manhã passada. Não tem mal! Caminho extra pela avenida do bairro, tempo que não via a Silvia desde que ela arrumou esse romance com Matias, e seu dia de folga na semana era a ele dedicado. Mas tinha o balcão do café - abismo do abraço de há muito sentido - separava o hiato dos dias, pois havia o Matias, outros compromissos, uma viagem insolente, de repente, para fazer outro abismo na rotina.

- Raquel! - surpresa danada nos olhos da Silvia e o nome à boca resumia todos os últimos quatro meses em que restaram likes e alguns comentários nos dedos, aos intervalos das duas.

- Silvinha, me faça um café bem quente! - o incidente de três paradas antes fazia valer todo o sorriso e reencontro.

Uma conversa intercalada, com o café quente, pedido de um novo cliente, o abismo do balcão, o bêbado chato a importunar dois acidentes de percurso e o tempo confuso e mais a desculpa que toda a gente simplifica nesses tempos de "vou ver aqui e, qualquer coisa, aviso!" Ainda tinha o Nino com fome e todo tempo que se passe resultaria em mais bagunça pela casa, por ciúmes, por saudade. Todas as pessoas e bichos sentem saudade.


- Silvinha, que tal este fim de semana trazer o Matias aqui? Preciso conhecê-lo, mulher!

- Pois é... Domingo, Sr. Manuel me deu folga, mas o Matias quer me levar para conhecer a tia preferida dele, em Penedo...

- Ah, quanto tempo que não vou a Penedo!

- Tia Amália está muito ruinzinha do fígado, coitada, tive que suplicar essa folga para vê-la.

- Será bom para ela...

- É. Será.


Foi só um beijinho com o balcão no meio das duas e a promessa de "vamos nos ver" e "precisamos colocar os babados em dia", porque Nino já deveria ter feito algazarra por todo o chão. Porque a fome de um gato e mais a saudade fazem coisas irracionais, prejuízos reais. Coitado. Um gato safado, a companhia dela até a hora do fim da novela e o sono chamando. Fim de mais um dia.
Foi só abrir a porta, Nino já foi esfregando o rabão peludo nas pernas, o miado que cobrava atenção. Havia xixi no chão; tinha mijado fora da areiinha.
Primeiro, limpar aquela bagunça de gato. Depois limpar aquela louça da manhã, da noite de ontem e da manhã de ontem e talvez de anteontem. O cheiro de lavanda, deita lavanda pela sala inteira, desinfeta e mete o cheiro de coisa limpa, mas a limpeza pesada, só sábado à tarde, depois do expediente. E o corpo dela, há muito descuidado, ficava para o fim da etapa da limpeza, tirar a pressa do dia, o calor do dia, mas olhava pelo basculhante o céu fechando e parecia que a chuva iria ajudar a refrescar o fim de noite. Ainda bem. Atrasou tudo, a novela já começava, o banho estava demorado para tirar a inhaca de gato fedido que mija a casa toda. E faz ainda uma doce companhia para os dois blocos finais da telenovela após comer toda a tigela de ração novinha, desta vez com sabor de atum. Hummm. Gatinho fedido, safado, deitado no sofá pedindo cafuné na cabeça.
Lá fora a chuva já derramava a água sobre os telhados de fibrocimento. Aquele barulho que tinha que colocar o volume da televisão no cinquenta para poder ouvir melhor. E o sono que era maior? Raquel só precisava de cama, com o tempo fresquinho lá fora, talvez com a ventania, sonhasse com uma escalada na Cordilheira dos Andes. Ela era dessas, que sonha alto.
De manhã cedo, o despertador em cima da cabeceira da cama soltava um estridente "bom dia". Desta vez, não tão claro porque a chuva já durava mais de oito horas. O céu cinzento; chuva grossa, mesmo, parecia que a roupa por cima da tábua de passar teria que, por cima dela, levar aquele casaco guardado com cheiro de naftalina. A bota arranhada, mas a única que tinha. Traje completo. Banho às pressas. A pressa de ontem e também de anteontem. Ração do Nino na tigela, lixo amarrado com toda a caca da noite passada, o gole de café e a mordida no pão dormido. O pote de comida na geladeira, separadinho em sequência dos dias da semana. Hoje é quinta-feira. Uma quinta-feira de um temporal que deixou as ruas tomadas por um rio de água e lama.
"Vai atrasar tudo, ferrou, perdi o busão!", pensou ainda contando três minutos para a condução passar. Quis correr, mas a visibilidade não era boa; a calçada, escorregadia; correu assim mesmo, escorregou. Bateu a cabeça no chão e a condução veio bem em cima dela. Foi o sonho que na noite passada fê-la acordar às três da madrugada, suando num tempo chuvoso.
Foi o descanso do dia. Amanhã, a notícia triste do jornal. A saudade do gato seria por quanto tempo? E a bagunça como seria? E o hiato infinito na vida do gato vestido de fome e saudade; e o abismo que terá no abraço não dado pela Silvia, pela Maria, pelo Paulinho e pelo Tonho. Ainda tinha o Matias, que não a conhecia.

6 de setembro de 2019

Gato sem aperreio

A materialidade se joga à minha frente de uma maneira impressionante, corresponsável e com a permissão que dei, ao suficientemente claro, de falar comigo. Falo de exatidões com a licença poética de uma interpretação pessoal, que só minha sensibilidade - a mais importante - pode me salvar. De olhos fechados, perceber a existência das coisas, ao tato, poupa-me de tempo perdido e me faz ocupar espaço obtido. Não há, aqui, aceitação de garantia dada por terceiros. Quando passa do primeiro, a probabilidade de o ruído ser maior aumenta consideravelmente. Portanto, um agnóstico muitas vezes guarda opiniões para si, e isso não faz dele de todo insensível às coisas, por exemplo, sem forma física. Não recorre à prefixo "meta", nem se apoia em transcendências, tampouco se volta para si para explicar noções. Creio nisso como caminho do equilíbrio. Esse blá-blá-blá tem fundamentos contra o egocentrismo ao passo que refuta também sobrenaturalidades. Existe? Pronto! Quem disse? Conta quem demonstra! E, depois, um ponto para evitar até Terceira Guerra, digamos assim: o ponto da paz.
Quando resumo à coisa, uma incrível palavra que cabe em qualquer entendimento sem precisar de uma definição exata, já estou afastando, ao improviso, a existência daquilo, por sua vez, formatado. Amplificações - sem passar o limite ao encontro de charlatanismos - da necessidade de encaixar coisas, a tal precisão absoluta, tecnicamente invisível, conforme explicou Clarice Lispector, de forma tão bonita, falando da verdade e da perfeição. Então já começo a ficar coisado para aquém e para além de mim, significado mais simples sob quaisquer circunstâncias, sem querer muito aperrear.
Tudo bem, eis aqui um homem aperreado, com a humildade possível de reconhecer aperreios. E já vou avisando que estes não causarão guerras; pontuei a paz linhas atrás. 
No Nordeste brasileiro, o verbo aperrear veio do espanhol, que também foi nosso invasor e deixou esta herança linguística. A origem de aperreado está na palavra perro, que em espanhol significa cachorro. A qualidade do aperreado, assim, literalmente é ser alvo do ataque de cães. Isso porque os ferrenhos espanhóis que aqui desembarcaram atiçavam cães ferozes contra nativos, a fim de assustá-los e fazê-los devorarem vivos os pré-colombianos.
Talvez meu medo de cães venha de uma prática muito antes de eu ter existido e, como se sabe, a genética é poderosa e talvez minha geração saiu passando esses genes de tal maneira que, hoje, sou este homem aperreado em busca de equilíbrio. 
Em contrapartida, desenvolvi uma paixão imensa por gatos, os bichanos divinamente cultuados por uma civilização muito mais antigas que os castelhanos colonizadores da América. Estou falando dos egípcios, que cultuavam os gatos para que pudessem conter a praga dos roedores que ameaçavam a tão próspera agricultura, além de transmitirem doenças.
Diferentemente dos cachorros, que foram domesticados e perderam suas principais características primárias e, como dito antes, foram adestrados inclusive para assustar pessoas, os gatos, apesar de sua vida doméstica, preservam as funções primárias e nunca foram exatamente domados. É um excelente caçador, por instinto. Esse comportamento deu aos felinos uma característica bem peculiar. Atacam apenas sob ameaça ou necessidade de se alimentar. Lembro-me de certa vez meu gato atacar um passarinho que se debatia na varanda. Neste frenesi, representou uma ameaça e foi logo tragado pelas unhas e dentes do meu bicho. O senso de coletividade fez de mim, segundo entendi novamente ao ler um artigo, o porquê de eu ter sido presenteado com aquela caça. Quando coloco seu alimento na tigela é como se eu tivesse repartindo minha caça com ele. Portanto, normal que ele venha dividir a sua comigo. Não existe o ditado egoísta para esta relação: "farinha pouco, meu pirão primeiro". 
A noção de companhia fez de mim ainda mais entusiasta da criação. Companheiro da casa, até hoje tenho um gato de 16 anos (quase 17). Até hoje. Este percurso natural da máquina viva encerra-se no ciclo, quando não da intervenção acidental, seu tempo de vida. O senhor felpudo, ademais de ser um paciente renal, teve diagnosticada metástase pulmonar. O sofrimento tem se arrastado por muitos meses, os sintomas são os mais dolorosos possíveis para mim, avalia para ele. 
Então, na data de hoje, autorizei a eutanásia, de coração partido, porque a saudade de um companheiro de longa data só me traz um aperreio imensurável. Outro aperreio é entender que a dor do outro é maior que a minha. Com a racionalidade que me distingue do instinto selvagem, sem esperar em sobrenaturalidades a postergação de um ciclo que já se encerra, considero na memória textual a expansão do significado de estimação. Um adeus é, talvez, um aperreio do tamanho que se dá à sensibilidade, mas o descanso sempre será o maior dos equilíbrios e, certamente, a tradução mais perfeita da liberdade que o amor nos traz.

2 de setembro de 2019

Fundo do poço

Lá ao fundo estava eu, todo vestido de dor, como quem não quisesse ser esquecido na imensidão. Mas, na verdade, eu não queria, à altura, coisa alguma. Eram muitas cores, coisa bem repartida, não consegui ver direito, mas era aglomerada em nuanças, no mínimo, pareciam dois grandes grupos. Escutei algo, lembro-me de alguns nomes: Joana, Alice, Manuel, Pedro e outros. Também havia o cachorro que andava manco, um passarinho que se debatia com a asa partida nos cantos que nos cercavam, o mendigo cantarolando - sem nome e já esquecido pelo povo -, muita gente, mesmo. Havia um ar seco que fazia pessoas tossirem, o ar que entrava e saía, circulava por ali, às vezes escurecia e parecia uma densa fumaça. Ela se espalhava. Continuei no meu silêncio habitual; abri uma garrafa de água com gás e bebi com toda força da sede e necessidade de borbulhas, sei lá: no estômago, no sangue, nas extremidades do corpo. Um arroto, uma falta de educação, uma reação física muito comum. Talvez um drama de etiqueta fizesse, além da cor da minha roupa e do som do meu corpo, o ruído daquelas caras feias cheias de julgamento. A gente era um monte de descrente, crente, número, indivíduo. Era o serviço de inteligência do mundo e o desserviço por birra, uma grande contradição. Precisava de líder: um sacerdote, um jurista ou presidente? Mas era, como sempre, mais gente metida nesta confusão. Essa cavidade não parava de encher. Luzes, sei lá, flashes, selfies, risos, mensagens instantâneas, fake news... uma mistura de tanta coisa e tanta coisa parecida. Uma cavidade dada por escrutínio.

20 de agosto de 2019

Grinalda de Cana-de-Açúcar


Não sou genuinamente vilã, como pensam, senão uma pária dentro do latifúndio. Soube-me então esta digressão, minha rota do lado de fora, embora as rédeas do caminho se atêm ao interior, sempre quis meu império íntimo, no mínimo. Manipulei o próprio sangue nos olhos e, dele, fiz o arranque. Quando foi o sangue menos denso e dissipado, entretanto, coube-me a primigênia dos Zero, que se fundiu do pai – José Zero – um lavrador orgulhoso, cujas mãos calejadas nos alimentaram precariamente, pelo corte da safra gramínea, com a mãe, Dulcineia Zero, que sempre arou os poucos metros onde nos enfiávamos, sendo apenas genitora, esposa e devota a todos. 
Depois de mim, veio a Dandara. Depois dela, foi-se todo o útero de minha mãe, entregue a Iemanjá, pelas dançantes taieiras nas terras sem encruzilhadas, onde balançam canas-de-açúcar ao vento alísio. Ah, esse sopro úmido escondendo as lágrimas de nossas perdas diárias que se confundem com o orvalho das manhãs de São Miguel dos Campos! Às noites, eu ia e vinha de Maceió, para que eu pudesse me tornar bióloga.
Um dia, diminuíram os cortes de cana, a renda parca ficou ainda mais escassa; os cortes nas verbas da universidade, em contrapartida, cresceram. Eu só tinha uma opção. Então um vendaval forte e sinuoso me fez voar para a Europa Meridional, para iniciar meu doutorado numa instituição portuguesa. 
Houvesse música para esta etapa da vida, seria um canto védico, ainda que eu seja uma latina soprada ao Velho Mundo: “Esta planta brotou do mel; com mel a arrancamos; nasceu a doçura (...) Eu te enlaço com uma grinalda de cana-de-açúcar, para que me não sejas esquiva, para que te enamores de mim, para que não me sejas infiel." Rompi o esteio miguelense, conforme o sopro eventual de alguns anos e dois graus conferidos. Aportei no Porto, bem diferente da minha vila. Não havia deuses nos quais me escorar; era um bocado de semideuses ostentando um currículo impecável para me formar doutora, não bastasse ser a única alfabetizada de uma família campesina. 
Numa noite de festejos nas Galerias de Paris, ruas boêmias da Baixa do Porto, um moço astuto, grosseiramente destituído de finura, que, ao me encontrar, numa celebração de conquistas, desdobramentos de outros descobrimentos mais legítimos, disse-me:
– És a mais linda meio preta dentre as estrangeiras! – com toda liberdade de uma vileza sem punição, solta como gabo inocente, mas tão incômodo quanto àquele sorriso que encantava.
– Olha, sou toda preta. Cem por cento. Mais do que esta noite com as luzes oponentes. – sentenciei minha verdade com brio de consciência. 
– Não me leves a mal, há piores... Digo eu, estou impressionado com tanta beleza em um tom mais escuro com o qual normalmente me impressiono. – continuou a me insultar com tudo o que lhe faltava de galhardia.
– Qual o motivo de não gostar da nuança de minha pele e achar que está impune ao me insultar por seu desgosto? – perguntei para que, no mínimo, tivesse consciência de um crime. 
– Não estou a dizer que não gosto. Estou a dizer que me impressiono justamente porque, à partida, eu, ao que me conheço, nunca fui tão surpreendido por tanta beleza. – ele mudou o tom e parecia querer se redimir da abordagem estúpida.
– Não há vingança em que me apoie que vá abaixo dessas palavras. Bom divertimento! – finalizei sem querer desculpas ou perceber aquele sorriso como redentor de todos os pecados da colonização.
– Peço desculpa. Eu sou o Marcos. Não te deixarei ir sem saber o teu nome. – insistia numa conversa que já começou com imprudência.
– Tudo bem, Marcos... Boa noite! - catei seu nome para jogar no próximo lixeiro à frente.
– E não me vais dizer o teu? – uma licença para formalidade após o desastre que só lhe salvou o sorriso.
 Foi o primeiro choque cultural. Ele riu. O sorriso me deu ódio, paixão e a necessidade de desconstruir muitas coisas que há séculos já nos condenavam. Foi quando já vinha com um copo de vinho na mão e mais um pedido de desculpa.
– Meu nome é Dulce, antes e depois da preta que você achou melhor do que outras. – minha paz naquele instante engoliu numa só dose o armistício. 
– Espera lá! Isso não é cachaça! Não é assim que se bebe... – Marcos me advertia a moderação.
– Não bebo cachaça. Este foi o gole para afogar o que restava solto na trincheira. – como me importasse com as guerras, como visse o sangue na cor de um copo transparente, concluí o primeiro de muitos copos. – Agora você vai cumprir nosso acordo de paz! – então saímos em busca de cachaça.
Ficamos a noite inteira no intercâmbio diplomático. Marcos bebia caipirinha; eu, vinho do Porto. A todo instante ele se desculpava pela péssima maneira de querer me elogiar. Segundo ele, era um elogio. Eu, entretanto, já tinha vencido outras batalhas; ele se apoiava no bairrismo de pertencer à cidade invicta. Criamos ali o escambo alcoolista. Por este encontro inusitado, infeliz no começo, levou-nos, ao final, sem muito me lembrar de como chegamos até meu apartamento, talvez mais alegres, pacíficos. 
Quando a claridade invadia como um inimigo declarado de guerra entre povos, o sol na cara e a vontade de beber água, a mais gelada que houvesse. Tinha dormido com um inimigo? Ou acordado com dois. Contudo não me senti sitiada. O oceano muito escondia a minha vergonha; a terra firme de outrem me dava segurança de um assédio convertido à cumplicidade. Introduziu-me o prazer de novos deuses, libertou-me dos meus demasiados pudores femininos. A partir de então, noites e noites em que Marcos me bebia enquanto devotávamos risos pagãos... Poucos meses me fizeram ser a diáspora nagô, caeté, ameríndia, qualquer mitologia. Um passeio à nau sobre águas turbulentas que um racista capitaneava ao dispor de seu sorriso conquistador, pelo mundo afora em toda Península Ibérica. Poderia ser o inimigo declarado, mas se fez companheiro.
Foi um naufrágio que nos levou ao fundo do mar, o mundo me levou com mais um sopro irônico da vida. Os ventos da insistência me fizeram brisa marítima, levando-me das águas para o continente, outro: o meu, mais ao Norte, como um vento contra-alísio, do Oeste. A convite do meu orientador, entrei em mais um movimento brusco. Quase em linha reta, atravessei o Atlântico para estudar sacarose com outro viés. Deixei um lugar, um acidente de percurso pela farsa teórica das raças. O prazer de um só povo e o prazer de um só corpo... Separaram-me novamente com o golpe frouxo do destino. 
Havia por toda Europa e, agora, os Estados Unidos da América uma ameaça. Sacarose em excesso, era a suspeita. Sacarose sempre foi o meu Norte, desde lá no Sul. Tudo que estudei, o quê nasceu praticamente comigo, como eu também fosse feita grão duro de açúcar, um dissacarídeo composto – uma molécula de glicose e uma de frutose. Uma preta mascava, úmida, solúvel, escura, distante desses cristais brancos pelas etapas de refinamento. Finos e impuros. Não menos doces, fusões.
Dra. Gupta, a endocrinologista chefe da equipe, já me dava a credencial assim que desembarquei em Massachusetts. Primeiro, vinha ZERO, em caixa alta; após a vírgula, Dulce, meu nome de registro; abaixo um código de barras com uma foto três por quatro no canto direito inferior. E do lado esquerdo, uma pequena bandeira, indicando o país de origem. Era meu cartão de ingresso ao laboratório, preso a uma fita azul que punha em volta do pescoço e o crachá que ficava sobre o meu dorso.
Ela me guiou até o meu alojamento. No caminho, a doutora me explicava que “já está descartada a hipótese de um novo tipo de diabetes”.
– Então qual a hipótese, doutora?  
– Um vírus, Srta. Zero! – foi categórica. 
Ao chegar à porta da residência, senti como se as velhas fuligens das queimadas escurecessem todo o brilho que apostava na vida, admitia a opacidade dos meus deslocamentos. 
– Descanse e amanhã teremos tanto para conversar. – despediu-se a morena de olhos grandes, a mulher poderosa, um exemplo para mim. Mas nada, nesta situação, fazia querer ser como ela.
Nem desfiz minhas malas, já deitei no sofá, com a cabeça a mil, o peso de toneladas de pensamentos necessitando do suporte; não havia espaço para sonhos. Uma viagem que confundia todas as minhas batalhas. O vento que vinha da janela me fazia lembrar os movimentos que me levaram aqui e acolá. “Uma menina que saiu de um canavial”, pensava! Agora estava numa trincheira ainda maior, sem vitórias nem derrotas. Pensei o quanto caminhei escorregadia tentando me agarrar em tudo. Por querência; um punhado de sobrevivência; algo de ímpeto; ciência para luzir. Perdi todos os meus deuses em tormentas de um só oceano. Algo perdido desde o início, portanto nunca ganhado. Pelas distâncias em que a vida me sacudia como uma catapulta, nunca estive tão perto de tudo. No máximo, assistia de cima, ou por baixo. Não sabia mais das minhas escolhas e garantias ou da semente germinando no coração daquele tripeiro deixado num Porto de um homem com medo. Tinha sido essa a razão de sua piada de mau gosto, tal qual a forma como foi criado e jamais me levou para conhecer seus familiares, refinados cristais brancos, impuros. 
O meu telefone chama. Somente um nome acende no entardecer do terreiro imperial, em cujo trono estou deitada, esperando uma decisão que me faça valer mais do que todos os mistérios sobrepostos no front de guerra interminável.
– Dulce, estás aí? – a voz que vinha se açucarando parecia um tanto salobra.
– Sim, Marcos, acabei de chegar aqui. Não desfiz sequer as malas... 
– Não me disseste nada ainda. Correu bem a viagem? – como se ele não soubesse que foram dos piores ventos enfrentados.
– Está tudo bem. – uma mentirinha não iria fazer mal antes do banho. – Eu vou tomar banho e já retorno para falar algo...
– É que... – sua voz soava trêmula – Só gostaria de ouvir-te. Até mais.
Não tinha mais forças para falar. Talvez um banho me revigorasse, não fosse a mensagem em seguida ao término daquela chamada: “Não queria deixar-te mais preocupada, mas acordei com formigas por todo o corpo, fui atacado por muitas delas.”.
Tomei o banho que revigora. Vesti a roupa como quem veste carapuça com pressa. Só queria voltar para casa. Precisava de uma trégua. Acho que meu dever já tinha se cumprido. Ninguém tem ideia do que tive que passar para chegar até aqui e não sentir nada. Queria novamente a simplicidade do meu ponto de partida, a segurança para todo o resto de vida longe de novas contendas. Fechei os olhos e me imaginei sentada na pedra em frente à minha casa, esbagaçando roletes de cana com fiapos nos dentes e um sorriso de canto a canto da boca. 
Escrevi numa folha e enderecei ao laboratório aos cuidados da doutora Gupta. Sem mais desculpa. Apenas o anúncio do meu desligamento, uma frase entre aspas, recordando o doutor Joshua Lederberg: “A maior ameaça ao domínio do homem neste planeta é o vírus”.

28 de abril de 2019

Cuidados Paliativos

Não foi o cheiro impessoal da noite em que se tira todo o perfume do dia, na água fria de um chuveiro com instrução de uso, que me fez pensar duas vezes sobre sensações. Ficou o cheiro natural das coisas e um branco contrastando com o colorido tímido e ornamental. Aquilo poderia ter sido um grande acidente, mas eu já tinha tudo previsto. Pacientemente deitado, escolhendo no arquivo dos melhores momentos, apenas os bons, mesmo, a prosa e o improviso em lucidez. Eles não vieram. Lamento. Paciência! Muita coisa não veio à tona, porque, como de costume, persigo ideias mais do que luzes no fim do túnel. Porque seria previsível, mas eu não resolveria uns transtornos aí que todos os homens procuram sobrepor e depois lapidar.
Quantas constatações nos nossos olhos e o silêncio pensativo de quem arranjava palavras à inabilidade de atitudes convenientes por exercício do prazer. Não correspondi o prazer; amiúde, sabe, não tenho sido tão responsivo quanto calado fico predominantemente. Penso que talvez viva a etapa mais silenciosa, menos responsiva, mais intolerante, menos equilibrada: uma equação insolúvel dos dias de glórias mortas. 
Bem, era irresponsabilidade na cabeça que mantinha a tensão a cada minuto, percebe? Era bem menos eu ali do que eu já tinha sido dois dias atrás. Eu estava, no entanto, completo e ao mesmo tempo escutava o eco no vazio que preenche qualquer cômodo com mobília e pouca luz. Será que você percebeu mesmo que eu estava doente? Deve se acostumar ou ter costume a cada ocasião dessa! Tentou, ao menos. A minha dúvida, realmente, deixou-me doente: sempre, no mínimo, duas propostas antagônicas me equilibravam sobre as pernas... Animal que sou, circunstancialmente uma centopeia desequilibrada, quando liga/desliga o botão da função "representar". Não é um disfarce. É um eufemismo natural de um paciente que pleiteia alta... Altos e baixos orgânicos, você percebeu, que eu sei! Você cogitou muitas coisas e até me perguntou se eu tinha alguma coisa que queria falar. Sim tenho. Mas me interrompeu mais uma vez dizendo que já sabia tudo o que se passava na minha cabeça. E acertou resumindo em adjetivos. É... não precisa muita pretensão para devolver em palavras ou gestos o que as mãos hesitam ou a boca titubeia. É bom ter cumplicidade quase que imediata, ainda que ela acabe em um par de horas ou uma prorrogação inconclusa. Chegar a concluir da noite, agradecidos, nós, e mais eu, não por cura, mas ser muito bem tratado. 

28 de janeiro de 2019

Jogo de Milico

Esconde os dados do grande tabuleiro,
Um país inteiro à mercê de um exército de nada a ver.
Soldadinhos de chumbo, de estranho ou talvez nióbio,
Quantos deles serão suficientes para aplicar a tábua da solidão
A regulamentar a vida conforme liga de metais pesados, a lama e muito caos?

- Um grande tabuleiro! Um grande tabuleiro! -
Gritou o garoto entre os garotos que gritam dores,
Choram privilégios com lágrimas que pigam gota a gota
Numa conta do tamanho dos seus patrimônios.

Ah, eles também são especialistas em exorcizar demônios
Que vieram de outros cantos que não os cantos presbiterianos
Celebrados no cume da Trump Tower ou algum ponto dos vales de Davi!

Eu vi e ainda vendo a escola sendo criacionista dominada por terraplanistas
Cheios de ciência ortodoxa com uma pitada bem caprichada de liberalismo.
Fogo! Fogo!
Queimam todas essas bruxas marxistas,
Queimam as bichas ou usam o maior requinte de sua inteligência
Apagando diariamente um direito que evoluiu sob muito sangue negro,
Um peso grande chamado de arroba,
Como animais que não tardam em serem entregue às caças.

Olha, vão vir quantas medidas provisórias
Para ganhar-se tempo até comprar os outros soldados sem deus no coração?
Aqueles da bala e do boi...

Fazer um guisado com muita pólvora no tempero,
Que desprezo à diversidade...
Que despreparo no cozimento dos sufrágios!
Receberam uma intimação à moda das trincheiras,
Se não veio por disparos à queima-roupa, ainda,
Foi à queima-gramática, queima-qualquer-rubra incidência.
A decência dos homens  - cidaDÕES -
Se mistura com a tara dos mitos,
É um caldeirão de vísceras ruins,
Que não cabem numa bolsa, toda essa bosta..
A quem se limpe com mãos dadas, olhos fechados e oração.
Eu, não. Eu não participo do jogo.