Não é porque minhas malas estão espalhadas pela sala que eu deva achar que sempre é hora de ir. Há um bom tempo não tenho estado permanentemente num lugar onde eu possa dizer: que bom lugar para ser meu e, oportunamente, julgar nosso, quando eu queira oferecer gentileza! As paredes têm sido companhia mais presente, no entanto minha relação com elas, sempre conturbada, impõe, a mim, o rigor da subserviência, obedecendo à ordem de silêncio. Então, não tenho como compartilhar uma palavra falada, presencial. Meus dedos, mediante o regime escravocrata da dor e, à soberania das divisórias concretas, ficam nervosos, sonhando com a alforria diante de uma página em branco. Então, sendo assim, tenho voz.
Sou escravo branco - dotô Emerson contestaria: "onde você é branco, rapaz?" -, de obrigações nômades e, contradito, libertado ao ir-e-vir obrigatório, à luz de um lassez faire, laissez aller, laissez passer quimérico, aplicado às relações humanas muito além do que se reduz à moeda de troca: minha condição fica mais à deriva do que eu queria.
Para fugir de mais um horizontal expurgamento familiar, nada mais atenuante que o empuxo feminino, fortemente sentido como golpe: baixo de onde advinde. Perto da data limite, pensar, sob pressão de prazo estipulado com tolerância à mercê da boa vontade, é ruído estrondoso na mente que precisa mais-que-silêncio-das-paredes-companheiras. Então, parti.
Este abril despedaçado, então, é outro marco que me arremessa à posteriori, antecipa meu inicio de demarcação de espaço pela grana com destino inerente - minha antessala com malas espalhadas, quando eu bem queira - e minha imersão no Universo Paralelo.
Estou em 'Barão', posso me cuidar. Aqui, os escravos do café já fizeram história. Remeto à memória de muitos que não puderam, como eu, agora, brincar com todas as ironias do destino, escrevendo prosa, satirizando História e, com o humor que a vida me deu, pedindo a Deus um brinde com Pepsi-Cola.
Foto: Distrito de Barão Geraldo, Campinas-SP (fonte: divulgação)
Sou um brasileiro médio. Estou fadado à esta concepção de reducionismo.
Estar ao meio, não referido ao centro, mas no meio das escalas, impostas pelos índices de vergonha e controle social a encontrar nossa identidade em números escalonados, ligeiros e diretos. Identificando, assim, nossa natureza. Fui educado em boas escolas, com sacrifício da minha geração anterior, sob o discurso da mobilidade social através dos papéis que se acumula, porque ninguém, em tempos atuais, chegará a reconhecer talentos, se não lhe deram, na vida, os mecenas contemporâneos. O óbvio do reconhecimento a curto prazo, ao meu ver, vem: ou você nasce muito bonito (ou feio o suficiente para ser achincalhado); ou você tem talento para o futebol ou é artista nato. E não se pode pensar na genética em favor de dons que a nação ovaciona; - se alguém souber, grita, por favor, que é preciso catalogar. Há outro talento que não vale ovacionar - diante das educações cristãs familiar e escolar que recebi -, no entanto não pode passar em branco: é bom lembrar aqueles que circulam nas rodas da fama, mas por trás deles está a esperteza do roubo institucionalizado, porque não dá para circular, pomposo, se você é ladrão médio. O Brasil tem ídolos que são uma verdadeira tragédia para quem consegue olhar com aval da consciência crítica. Eu optei por estudar, seguir a herança da honestidade e peleja por um espaço, que só se compra com papéis. Estudar por obrigação tem sido difícil, mas aos poucos vamos identificando afinidades com as leituras e a coisa pode ficar mais prazerosa. Ultimamente tenho lido sobre a tragédia, porque estou projetando uma pesquisa sobre o trágico (mimético) no cinema de um contemporâneo do cinema pernambucano. Face à preguiça, há um prazer em ver a tragédia nas relações humanas, algo inerente à qualidade de nordestino que vive tão próximo à realidade que vai parar nas telonas e faz sucesso (por vezes, polêmica) entre a crítica, dando ao tal cineasta reconhecimento por sua arte. O irônico de tudo isso é, que nos estudos que tenho lido, saber o tanto que me identifico é a parte mais cruel e, de certa forma, paradoxal: "O surpreendente progresso científico e técnico que nos torna 'senhores e possuidores da natureza', como queria Descartes, nos dá ao mesmo tempo a sensação de que beiramos a catástrofe a todo instante."
Imagem: Medeia, de Paul Cézanne (capturada em: http://www.paul-cezanne.org)
Sinto na alma o privilégio de ter pessoas em minha volta que acreditam no meu potencial e depositam todas as gotas de seu sacrifício ou mesmo a fé numa palavra sustentação (que vem por telefone, e-mail, recado, etc). Esses atos, mais do que o símbolo de uma crença e apoio, são vigas que ergem e seguram a passarela da coragem onde passeio neste lugar.
De alguns, escutei frases emotivas, muitas delas concomitantes às lágrimas que pareciam ser presságio da vitória coletiva desses corações que batem a fim de um pouco mais de segurança na vida. De repente, deparo-me com ledo engano... eu já não conseguia acreditar que aquela mão que afagou é a mesma que apedreja. Deparei-me com duas forças de expurgo que pareciam me jogar à esparrela onde se fundem o efervecente fracasso e o morno espírito de desistência. Uma delas, eu captei na minha própria família, na minha cidade natal, de onde surgiam os primeiros comentários deturpados sobre minha vida forasteira. O cuspe na cara. Palavras escutadas por informantes despretensiosos e sentidos pela minha vergonha que estava distante daqueles laços e chão. E eu escutava tudo por um aparelho de celular, enquanto a tristeza assolava minhas coragem e saudade, parecendo, mais uma vez, chamar-me ao retorno, com as mãos, abanando. A outra força que tenta subtrair minha energia vital, frente ao novo mundo, espreitou por um bom tempo minhas atitudes; frequentou o meu chão cedido; observou meu medo, algumas derrotas e a persistência; e, aproveitando o tempo que ainda tardia, deu o pulo do gato, saindo em disparada na minha frente, na frente que eu ainda não vejo, ainda que não esteja atrás de nada. Essas forças negativas atendem por três nomes, dos quais não vale rancor guardado, mas sim todos os nomes postos dentro de uma caixinha para que eu jamais esqueça.
Neste domingo de páscoa, meu amigo amazonense me perguntava o que eu mais sinto falta lá de Alagoas. E só agora, eu vim esquematizar, deveras, a minha resposta...
Hoje é o dia que eu ultrapasso a centésima postagem aqui no blog. Eu pensei em responder a mim mesmo, ao meu amigo, a Alagoas e aos meus leitores, em face ao número simbólico que comemoro da minha escrita pública, descomprometida com quaisquer interesses comercial e/ou fundamentalista. Sim, ponho minha ideologia a pensar coletivamente e abro espaço à discussão; aqui é meu lugar de falar, ouvir e, por que não, trazer um pouco do meu cotidiano de pessoa comum aos caros leitores?
Passei a tarde vendo e compartilhando vídeos sobre a cultura alagoana com um manauara e um recifense, criado em Barcelona. Gente que esteve distante da minha realidade, mas que se interessa em ouvir e ver minhas saudades e pôde perceber o que existe de tão importante na minha identidade cultural, que eu necessito mostrar com orgulho: essas raízes do meu povo, que alimentam a minha leitura de mundo.
O óbvio é o começo da minha resposta: a minha família. Há algumas pessoas consaguíneas que transcendem a barreira da territorialidade e serão sempre lacuna, diante da ausência física, no entanto parecem que estão em todo lugar que vou.
Não poderia esquecer meus amigos, que posso considerar a família que eu escolho pela afinidade e amor em evolução. E por último, mas não porque está distante das duas primordiais citações, está a cultura alagoana. Ah, muito difícil viver sem poder respirar a maior riqueza que eu tenho no meu Estado.
Ao chegar em casa, continuei a ver vídeos de danças folclóricas alagoanas, escutar música da terrinha, como se eu pudesse trazer aqui para dentro da sala , em que estou, o ar metafórico da minha existência, a principal fonte de inspiração, que pelo chão, possa me fazer tomar o caminho de volta, assumindo o domínio público que me consome ao estado de graça e orgulho de ser de onde eu sou.
Então, vi um vídeo institucional do Governo do Estado, através da sua Secretaria de Turismo, lançado há pouco mais de um ano; uma peça audiovisual para promoção da 'Terra dos Marechais'. Como sempre, o fazer público capricha numa coisa em detrimento de outra, porque há neste poder maior interesse naquela mesma proporcionalidade de seu capricho. Como todo colírio da paisagem alagoana - fonte de prazer e consumo - eu ainda vou eleger os recursos humanos, como a maior riqueza, porque produzem, sempre, o contreúdo primaz para o nosso belo cenário de pano de fundo.
Sinto, em terras paulistas, falta da identidade cultural, de maneira genuína, com uno sotaque, com una criatividade, do povo de quem eu faço parte, que construiu, apesar de abandono, preconceito e desinteresse até mesmo de muitos dos nossos, este patrimônio intelectual que dinheiro algum pode comprar (ainda que se tente comercializar tanta coisa).
E mesmo com essa paixão estampada na alma, com retalhos de lembranças; ainda que, com toda esta raiz que não permite ser outro, pois que me prende, em pensamento... uma coisa eu acho engraçada, por aqui: muita gente me olha e diz que eu não tenho cara de alagoano...
Assim, conhecendo-me melhor do que à época que saí do chão materno, acho que há um ditado popular que confere veracidade à observação: "quem vê cara não vê coração".
Gosto desse barulho da chuva, gotejando no telhado, numa madrugada fresca. Acontecer numa noite solitária é improvável tanto quanto o verbo. Nada acontece e começar a apreciar este nada, ainda que num tédio imenso chamado solidão. Estou gostando de vê-la da forma mais diferenciada possível, pelo ângulo bom, e ser assim: incontestável, sem queixas demais. Retroceder na lembrança dos casos deste dia: o cotidiano barato, mas não jogado à economia da vivência. Viver é o precioso estado; desmerecido o que economiza vida.
Saber que numa noite, que terminaria cansando, por um fast food sexual, o cabível destino, mudado sem esforço de palavras... aos animais não precisa usar a filosofia; basta uma palavra imposta ou um olhar de desdém sobre situações sem o poder de acrescentar algo além do trivial em qualquer esquina, em qualquer lugar. E no comecinho da noite, um papo científico, com o humor das nossas afinidades, cogitando um problema para pesquisa que pode até mudar meu caminho profissional. A noção do trágico em tal cineasta, sugere o amigo, um estudo para relevância de quem faz a arte com um olhar peculiar. Vou estudar o nordestino que me tocou com seus filmes, sob meu olhar amador à época, hoje experimental? No futuro, quero o falar como mestre. Mais à tardinha, um ou dois telefonemas para reparar danos causados pela audição escassa de voz que já é familiar. E na hora do almoço, pouco antes, à mesa, estava eu e meu alimento de dar àgua na boca, só de lembrar. E porque tenho sede é que bebi aquela água - ai, que trivial -, após acordar do meu sono diurno, porque cheguei de uma noite divertida, mas ainda diante de casos comuns, sem ter por que esperar mais do que só muda o dia, nada mais. Mais cedo ainda, nos primeiros raios do sol que o povo campineiro via; enquanto uns acordavam, eu ia dormir, numa sexta-feira - feriado nacional Eu pensei muito sobre o dia de ontem, porque ele se atolou no tédio, na falta do que fazer, na repetição do que comumente chamo de dias longe de casa, pois não sou, mesmo, daqui e nem sei por quanto tempo vou ficar. E os detalhes desta passagem caberiam num diário o qual me recuso a escrever. Eu quero lembranças não-linerares, provocadas por sensações que não me remetam ao tempo cronometrado, calculado; isso arde e pode virar livro banal. Antes deste, houve outro dia: algumas coisas triviais ainda precisam ser ditas.
"Todo dia, eu só penso em poder parar. Meio-dia, eu só penso em dizer não. Depois, penso na vida pra levar, e me calo com a boca de feijão."