Desde que Púmice deixou apenas as lembranças no sofá cinza que fora vendido a preço de banana no bazar, não fazia sentido qualquer utensílio que fizesse a gente renascida tropeçar ou escorar-se. Não fazia sentido ter dois corpos ocupando o mesmo espaço, como também não fazia diferença se aquela casa relembrasse um pessoa tão injusta com sua pouca densidade.
Pedro Seixas toda manhã, às cinco, saía para ver o mar. Na volta, abria a caixa de correios enferrujada pela maresia, onde guardava todas as doações feitas pelos vizinhos de um velho cheio de ranço e desvontade, para que ele pudesse comprar a ração do dia, que consumia apenas à tarde: a única refeição entre o sol nascente e o poente. Ninguém se metia na opção que Pedro Seixas escolheu desde a última primavera. Aliás, dias antes dela, ainda no início do terceiro mês do calendário gregoriano, Púmice - conhecida como a espuma da rocha -, que passou do ápice da taça que brindava novos tempos para alguém de baixa densidade. Substância nenhuma, sem peso na vida, boiava na água, alva, vazia, sem cor. Desde ali, desde que Pedro Seixas procurou tirar dela tudo o que enxertou em sua porosidade constante.
Não se sabe ao certo quantos dias, quanto tempo, qual exato momento ou coisa assim, já não tinha calendário, a data era incerta desde o último primeiro domingo do mês, que só e era tudo que Pedro Seixas lembrava quando decidiu dar tudo o que tinha.
No interior de sua residência, só se ouvia sua voz alta a reler ao sol poente, quando os meninos arruaceiros riam em alto e bom som, e repetiam juntos, como a maior piada do mundo: "Conheces o nome que te deram, não conhece o nome que tens." Era o início da vadiagem do dia, como evidência de que a noite que caía começava com graça e tristeza ao mesmo tempo, dependendo do ponto de vista. Eles se iam, e Pedro Seixas, à luz nenhuma, já não repetia mais nada, a escuridão cegava-lhe ou anunciava o silêncio e o fim do labirinto cotidiano. Já não via mais ninguém, adormecia até o outro nascer do sol.
Neste próximo, às cinco e ponto, ao sair de casa, no caminho de dez passos até a praia... era o oitavo, quase a sentir a onda tocar seus pés; quando Púmice, de súbito, provoca o intercurso fatídico:
- Pedro, já faz tempo...
E os olhos do ranço testemunhados por anônimos de casa, por vizinhos batizados com três ou quatro substantivos próprios e talvez um pouco de compaixão, que a caixa de correios sempre acusava, intimidou a reticente Púmice por cinco segundos.
- Pedro, precisei voltar. O que me diz?
As únicas palavras de Pedro Seixas eram aquelas lidas repetidas vezes, com o olhar de ranço sobre o livro, dentro de sua casa, sem culpa ou despreocupado com o tempo e tudo lá fora.
Então duplicou os últimos dois passos - agora quatro - para fazer desvio e chegar ao mar.
Quando o mergulho lhe lavou o cumprimento de uma liturgia diária, ainda sem responder a ela, uma sequer palavra, mas os olhos confiados no gosto agre só admitia o horizonte à frente. Todo o mais, inclusive ela, fez-se transparente e provocativo, como vento agressivo
Quando Púmice decidiu ir além da permissão dada por um olhar que a advertiu. Entrou no mar, provocou a dor - uma vez mais - sem dizer mais nada.
Pedro afogou o que ainda restava do tudo de si permissível entre os poros dela que coubesse até ali. Sem dó, com densidade, enterrou na água salgada o que restava de si naquela vítima que as palavras, obrigatoriamente caladas, transformaram em bolhas de ar até se dissolver e integrar ao seu melhor lugar: o chão por baixo de maré mansa.
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