20 de setembro de 2019

Ficou faltando o abraço

De manhã cedo, o despertador em cima da cabeceira da cama soltava um estridente "bom dia". Não tinha cinco minutos de soneca que coubesse na agenda e lhe desse tempo suficiente para terminar aquele sonho maravilhoso das férias em uma das 115 ilhas paradisíacas de Seychelles. Raquel não conseguiu mais uma vez mergulhar no mar. Chegou perto desta vez. A água ainda tocou seus pés, mas o alarme interrompeu o passeio completo. Café em alguns minutos, enquanto tirava a preguiça do corpo embaixo do chuveiro, pronto. A roupa separada em cima da tábua de passar que já fazia parte do mobiliário para o final daquele dia. Veste-se. O gole de café; a mordida no pão dormido. A comida do Nino solta na tigela. O olho no relógio: o ônibus estava a dez minutos da sua parada. Um bochecho rápido pra tirar o gosto amargo da pressa. Corria, subia no coletivo lotado. Chegava ao escritório, uma pilha de papéis para organizar. Olhos atentos, leitura infinita. Acabou. Uma hora de intervalo para esquentar o almoço e dá uma olhada na vida da Maria, do Paulinho, do Tonho e da Silvia - pelo telefone -, enquanto mastigava a sequidão do alimento que já cansou de choque térmico. Comida estrebuchada: da geladeira, do sacolejo do pote na bolsa, depois na geladeira da firma e, finalmente, o aquecimento em razão da radiação eletromagnética de 2.450 MHz. Depois dali, lavar a boca, os dentes, a cara, a coragem, tudo limpo do pescoço pra cima. Retocava o batom. Novamente, a bancada e dois terços dos papéis sem carimbo, sem revisão, passavam pelos olhos atentos em buscas das imperfeições tão indesejadas pelo homem lá de cima, aquele do "bom dia" tão curto que tinha o adjetivo engolido com a velocidade do almoço no refeitório.
Outro sonho permissível nesta parte do dia, era que os ponteiros do relógio rodassem com a velocidade do almoço, do "bom dia" do Sr. Heitor, do banho da manhã e da impaciência do telefone que a todo tempo não parava de tocar. Às vezes, ligação por engano; na maioria, não: eram prazos e cobranças e mais pressa, a mesma desejada para que o relógio marcasse as seis em ponto. Seis em ponto. Dezoito, melhor dizendo. O suspiro que só vinha de vez em quando, na copa, com os goles de água ou café, ou a vontade em última instância de ir ao banheiro para não retardar o compromisso.
Compromisso às dezoito e quarenta e cinco, no mercado da rua transversal, para comprar a ração do Nino e uma porção de coisas que, numa passada de olho dentro do armário, faziam falta. Não deu pra comprar tudo no compromisso de hoje. Duas sacolas nas mãos: melhor para o bolso e para o peso diminuído no caminho entre algumas esquinas, o ônibus de volta para casa.
Raquel sabia que tinha pouco tempo à noite. A louça pedia limpeza. O Nino pedia comida e limpeza porque cagou a casa inteira sentindo falta dela. A roupa para passar, na tábua de passar que era mobília permanente no cantinho da sala. Saltou do ônibus às pressas. Que mulher apressada! Enganou-se e saltou três paradas antes porque a soneca interrompida pelo solavanco do coletivo fê-la acordar com medo de ter passado muito além de casa, mas muito antes de chegar na tão sonhada Seychelles da manhã passada. Não tem mal! Caminho extra pela avenida do bairro, tempo que não via a Silvia desde que ela arrumou esse romance com Matias, e seu dia de folga na semana era a ele dedicado. Mas tinha o balcão do café - abismo do abraço de há muito sentido - separava o hiato dos dias, pois havia o Matias, outros compromissos, uma viagem insolente, de repente, para fazer outro abismo na rotina.

- Raquel! - surpresa danada nos olhos da Silvia e o nome à boca resumia todos os últimos quatro meses em que restaram likes e alguns comentários nos dedos, aos intervalos das duas.

- Silvinha, me faça um café bem quente! - o incidente de três paradas antes fazia valer todo o sorriso e reencontro.

Uma conversa intercalada, com o café quente, pedido de um novo cliente, o abismo do balcão, o bêbado chato a importunar dois acidentes de percurso e o tempo confuso e mais a desculpa que toda a gente simplifica nesses tempos de "vou ver aqui e, qualquer coisa, aviso!" Ainda tinha o Nino com fome e todo tempo que se passe resultaria em mais bagunça pela casa, por ciúmes, por saudade. Todas as pessoas e bichos sentem saudade.


- Silvinha, que tal este fim de semana trazer o Matias aqui? Preciso conhecê-lo, mulher!

- Pois é... Domingo, Sr. Manuel me deu folga, mas o Matias quer me levar para conhecer a tia preferida dele, em Penedo...

- Ah, quanto tempo que não vou a Penedo!

- Tia Amália está muito ruinzinha do fígado, coitada, tive que suplicar essa folga para vê-la.

- Será bom para ela...

- É. Será.


Foi só um beijinho com o balcão no meio das duas e a promessa de "vamos nos ver" e "precisamos colocar os babados em dia", porque Nino já deveria ter feito algazarra por todo o chão. Porque a fome de um gato e mais a saudade fazem coisas irracionais, prejuízos reais. Coitado. Um gato safado, a companhia dela até a hora do fim da novela e o sono chamando. Fim de mais um dia.
Foi só abrir a porta, Nino já foi esfregando o rabão peludo nas pernas, o miado que cobrava atenção. Havia xixi no chão; tinha mijado fora da areiinha.
Primeiro, limpar aquela bagunça de gato. Depois limpar aquela louça da manhã, da noite de ontem e da manhã de ontem e talvez de anteontem. O cheiro de lavanda, deita lavanda pela sala inteira, desinfeta e mete o cheiro de coisa limpa, mas a limpeza pesada, só sábado à tarde, depois do expediente. E o corpo dela, há muito descuidado, ficava para o fim da etapa da limpeza, tirar a pressa do dia, o calor do dia, mas olhava pelo basculhante o céu fechando e parecia que a chuva iria ajudar a refrescar o fim de noite. Ainda bem. Atrasou tudo, a novela já começava, o banho estava demorado para tirar a inhaca de gato fedido que mija a casa toda. E faz ainda uma doce companhia para os dois blocos finais da telenovela após comer toda a tigela de ração novinha, desta vez com sabor de atum. Hummm. Gatinho fedido, safado, deitado no sofá pedindo cafuné na cabeça.
Lá fora a chuva já derramava a água sobre os telhados de fibrocimento. Aquele barulho que tinha que colocar o volume da televisão no cinquenta para poder ouvir melhor. E o sono que era maior? Raquel só precisava de cama, com o tempo fresquinho lá fora, talvez com a ventania, sonhasse com uma escalada na Cordilheira dos Andes. Ela era dessas, que sonha alto.
De manhã cedo, o despertador em cima da cabeceira da cama soltava um estridente "bom dia". Desta vez, não tão claro porque a chuva já durava mais de oito horas. O céu cinzento; chuva grossa, mesmo, parecia que a roupa por cima da tábua de passar teria que, por cima dela, levar aquele casaco guardado com cheiro de naftalina. A bota arranhada, mas a única que tinha. Traje completo. Banho às pressas. A pressa de ontem e também de anteontem. Ração do Nino na tigela, lixo amarrado com toda a caca da noite passada, o gole de café e a mordida no pão dormido. O pote de comida na geladeira, separadinho em sequência dos dias da semana. Hoje é quinta-feira. Uma quinta-feira de um temporal que deixou as ruas tomadas por um rio de água e lama.
"Vai atrasar tudo, ferrou, perdi o busão!", pensou ainda contando três minutos para a condução passar. Quis correr, mas a visibilidade não era boa; a calçada, escorregadia; correu assim mesmo, escorregou. Bateu a cabeça no chão e a condução veio bem em cima dela. Foi o sonho que na noite passada fê-la acordar às três da madrugada, suando num tempo chuvoso.
Foi o descanso do dia. Amanhã, a notícia triste do jornal. A saudade do gato seria por quanto tempo? E a bagunça como seria? E o hiato infinito na vida do gato vestido de fome e saudade; e o abismo que terá no abraço não dado pela Silvia, pela Maria, pelo Paulinho e pelo Tonho. Ainda tinha o Matias, que não a conhecia.

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