17 de março de 2024

Morre-se um pouco para poder viver

Não tenho esquecido o dia de agosto, do seu aniversário. Mas como você se calou desde, sei lá, talvez dezembro, no meu dia, retirando-se de uma vez por toda de todas as promessas feitas, do consolo, um prêmio no matter what que denomina a isenção à culpa. 
De lá para cá, dois anos, quase dois, acho, que não tenho notícias suas. Espero que tenha morrido. Desejo com minhas forças nas unhas o pequeno esmagar de uma cabeça de formiga, que se tenha estourado todos os seu miolos ao chão e, por sorte, eu veja sua morte de alguma forma existir. Porque dentro de mim nada morreu e vivo assombrado em qualquer lado que eu estou, a vida passado, todo dia estou morrendo e vivendo um dia de cadáver... cada vez!Ainda que saiba que meu nome já não deve vir à sua boca nem para dizer que espera que eu esteja morto, porque assim me faria vivo em alguma parte de você, até na migalha que você deixou de me dar, que era um pouco da sua lembrança em alguns segundos da sua vida inteira. Nem para isso! Nada mais existe, nem minhas cinzas existem com esses ventos do seu lado. Sopraram tudo dos meus restos, dos meus farelos, misturados àquelas migalhadas que você me dava, bem por acaso, talvez com a preocupação de que eu fosse tirar minha vida por você.
Olhe bem, não tirei minha vida por ninguém, jamais! Nem por você faria isso!
Veja só o quanto morri a cada dia e estou aqui depois de tanto tempo sem escrever algo idiota como eu fazia ao acordar e antes de dormir, esquecendo só um ou outro dia de fazê-lo, mas sempre escrevia, com frequência: para falar qualquer idiotice minha que eu achava que prenderia sua alma num corpo já de tantas outras pessoas, oferecido em vão sacrifício e tesão dos seus 30 e pouco anos.
Mas minha alma já morreu antes do meu corpo naquela missa de alma presente e o corpo ausente, porque depois de você, tive que oferecer meu sacrifício de carne a outras tanta pessoas que tiravam minutos, às vezes, horas do meu dia, e levava consigo os fragmentos da minha alma que ia e vinha de algum lugar por cuja paz ela buscasse. Retornando sempre cada vez mais cansada e morta. Um pouco mais morta cumprindo a penitência que um dia decidi devolver às religiões. Eu matei todas elas para não acreditar mais nessa conversa de alma. E o mais engraçado de todos esses assassinatos, crimes, negligências me trouxeram no dia de hoje: nem um agosto qualquer, tampouco um dezembro. Hoje, março, vivo aqui, olha só! Vivo para mim, como se isso importasse em todo este texto que eu escrevi para você, que já me matou alguns anos atrás!

21 de agosto de 2022

Acidente de percurso

Amanhã fará uma semana que operei o joelho, depois de um acidente me parar à velocidade de 1000 km/h. 

Rompi a patela do joelho esquerdo. Ela se quebrou em dois pedaços. Eu vinha colando uns cacos aí, da vida, mesmo. A gente se restaura a todo momento. 

Estava a 5 dias da defesa do meu mestrado, precisei buscar uma encomenda num shopping há algumas horas da terceira mudança de endereço que faria nos poucos mais de 2 anos morando em Curitiba.

Já estava com novos planos profissionais também, na finalização desta nova etapa - decidi seguir carreira acadêmica depois dos 30 anos - em que eu precisei mudar de cidade,  já na sexta cidade que vivo ao longo da minha jornada.

Os ânimos esquentados por muito sucesso entre percalços por aqui: uma pandemia, uma recaída depressiva, tratamentos medicamentos há pouco mais de um ano.., o inverno subtropical soprou forte, fez-me cir de joelhos, eu levantei com as pernas quentes e sangrando, apenas sentei, não consegui mais mover nada!

Passaram: um homem, que apenas olhou, um sorriso de deboche bem tímido, nada perguntou; uma mulher ao lado, que parecia ter pressa num sábado à tarde, sequer me olhou. Até que a terceira pessoa que passou por mim, finalmente, exerceu a conexão humana um pouco rara, sobretudo no inverno, no shopping, na cidade. Foi atrás de ajuda. Foram quase duas eternas horas dentro daquela sala - bombeiros civis, paramédicos e o Juan, que foi a primeira pessoa que liguei para contar do incidente, segurava a minha mão e repetia que tudo ia ficar bem.

Fui levado de ambulância a um hospital de traumatologia, tenho poucas lembranças do caminho, só vêm flashes do paramédico fazendo brincadeiras pueris para tentar - acho - descontrair.

Descobri, por fim, que a fratura precisava de uma intervenção cirúrgica. Tive medo de nunca mais andar, foi a primeira cirurgia de emergência que faria, foi o primeiro passeio de ambulância que fiz sendo paciente e estando consciente dos meus medos na fase adulta.

A técnica de junção dos pedaços do osso sem uso de pinos ou parafusos com a costura do tendão patelar foram feitas no meu joelho. Quatro canais furados na patela, fios que juntam e se seguram ao ligamento do quadríceps e, logo abaixo, ao tendão patelar. Daí em diante apenas o meu corpo vai regenerar, com a impossibilidade de pisar ou flexionar o joelho pelos próximos 40 dias. E os movimentos comprometidos de agora em diante, só os meses de fisioterapia para responder às muitas dúvidas.

Foi uma pausa. Dolorida. Abrupta. 

Foi um tempo. É um tempo. Avaliar métodos, técnicas, pessoa e a mim mesmo. E não há vontade alguma de ficar parado. Mas precisei diminuir a velocidade. Fecho os olhos e só me lembro das mãos que me seguram neste instante. Tenho sonhado com meus amigos distantes, esses dias. Vontade de ficar em pé e firme, e acho que cheguei a idade de desacelerar.

24 de agosto de 2021

Terra passageira

Talvez eu possa estar avariado das ideias, está muito louco esse tempo... Eu pensei esta noite na insensatez da minha decisão, de querer esquecer-me de uma data e os olhos ficarem fixos no calendário esperando o dia chegar, o aniversário de quem já morreu; não o de morte, senão o de vida: vida distante de todas que eu não tive desde quando subi naquele avião. Dizer o quê da inconsistência dos meus pensamentos? Buscar terreno firme para pisar. Atolar-me na lama, sorrindo, porque você me rouba sorrisos de vez em quando, sujos como duas crianças em dia de domingo. Um parque, toda a gente, pais fingindo serem pais, mães cansadas, mas sorridentes, como nós dois, num típico domingo fora de casa. Aliás, houve uma falha no calendário, não me lembro quando o seu aniversário, sei lá, dia de comemorar quando chegar, mas não lembro, desculpa! Volta e meia, penso o que prometi, faz alguns dias; dessas promessas de quem só fá-las para não cumprir. Uma arte de sabotar; um teste de fracasso. Fracassar para me sentir vivo e querer tentar outra vez. Estou tentando esta brincadeira de novo. Brincadeira de ir para o parque em dia de domingo. E se fizer calor, vou adorar deitar na grama e ouvir novamente o pedido: "posso deitar a cabeça na sua barriga?" O frio na barriga. Sou esse que ainda tenho borboletas no estômago, geleira ártica em todo o sistema digestório; eu regurgito a emoção que excede os limites da minha carteira de identidade. Em tal idade eu deveria apostar menos fichas num sorriso que se rouba ou numa cabeça sobre a minha barriga, mas aposto meio que uma fração do que guardo em meus bolsos cheios de fichas velhas que venho guardando ao longo desses quatro anos. O bolso é o lugar de esconder e ao mesmo tempo está em fácil acesso. Onde escondo minhas mãos quando não as quero dar; onde recolho do frio que faz após o contato com a atmosfera fria, dessa frieza que escolhi me meter. Assim, meto as mãos quando dá, quando posso ou quando preciso. Estou com as mãos livres, em contato com o tempo. Já tem um tempo que você segura a minha mão. E houve dias que você me segurou antes de dormir. O dia em que você veio a mim para eu colocar a minha cabeça sobre sua barriga e chorar até dormir. E assim dormimos no lugar mais seguro que eu achei e apostei: nesse terreno instável. Só de estar pisando com os pés no chão, já me dou por satisfeito. Porque você ainda não me fez voar. Até porque minha asas foram cortadas em última instância. Repito, talvez eu possa estar avariado das ideias. E se minha cabeça anda meio perdida e desfoca, é na outra extremidade onde repousa o meu cansaço: do tempo, da morte, do voo e do ar. Terra em que eu pisar já é uma vantagem tão grande! Fazia já um tempo que eu nem tinha mais chão. Ficou um pouco de poeira, terra rasinha e algum cascalho. Estão no bolso junto com minhas fichas. Tudo está guardado para que saiba que tenho fichas, tenho solo, tenho fragmentos de algumas coisas: suficiente para acreditar. 

18 de março de 2021

Pane no sistema

O impressionante lugar da gente é ambiente imperfeito com suas dilacerações e remendos. Tive que olhar para o conjunto da obra; os detalhes pequenos no tamanho de sua pequenez deve ficar. Um lugar lindo cheio de opostos para lidar, uma sucessiva alteridade a cada ato de fala ou escuta. Entender o outro mais do que contrapor-se, é um desafio, confesso. Décadas de vida me fizeram experimentar aliados e opositores. Quanta ameaça e quanta desunião! Tem gente vindo de todo lado com as armas que têm para matar, roubar e destruir. Ora, um arranhão; ora, um estilhaço, pedaço de mim arrancado com a  falsa fome de quem só quer morder e cuspir fora. Onde estava unido, eu, diplomata da paz e bem, reforcei laços para não sucumbir à prova. Minhas armas brandas de diálogo e contundência para, quiçá, fingir-me de morto, de louco ou de otário. No interior, uma erupção vulcânica de lavas paranoicas, na quentura do delírio e excesso de irracionalidade. Suportei aquele derretimento como a frieza que conseguia, mas a razão das oposições são contraposições. Eu estava sempre tentando o equilíbrio térmico. Não mais que estava sendo eu mesmo, mesmo que perdesse por vezes a racionalidade. Apenas não conseguindo equilibrar o fluxo de energia. Ontem foi um dia assim...

Há um ano em pandemia praticamente, tive meu quarto ataque de pânico. Há bastante tempo sofro de ansiedade e -  menos mal - já tive orientações clínicas para o assunto. Poderia ter tido mais, acredito, no entanto consegui controlar a ansiedade muitas vezes para não ocorrer uma descarga como a de ontem. As notícias sobre as mortes por Covid-19, as pressões profissionais às quais tenho me submetido, a distância dos meu entes queridos e alguns problemas pessoais dos meus dramas cotidianos me fizeram quase no fim do dia acelerar o coração, sentir meus membros dormentes e gélidos por mais ou menos cinco minutos. Senti-me apavorado como se estivesse tomando doses tóxicas de algum veneno. E estava!

Decidi escrever este relato para que possa ajudar outras pessoas que estejam sofrendo da mesma coisa. Se tiver a opção de ter acesso rápido a um profissional de saúde, faça isso. Eu já procurei alguns, revi os meus níveis hormonais e descartei a hipótese de desequilíbrio neles, mas o fator não é apenas bioquímico. Li um livro da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva, por indicação de meu psicólogo em Maceió. Acho que o ponto interessante da leitura é a informação de um profissional com conhecimento do tema. Ali encontrei uma geral sobre os transtornos, no entanto algumas característica batia exatamente com a angústia vinha me sentindo. Pois dali em diante, tento evolui no autoconhecimento. Entretanto imagino que algumas pessoas devam ter dificuldades de ter uma acesso holístico a sua saúde. Alguns remédios são possíveis, como enfretamento e solução. Há aqueles de prevenção mais fáceis, como atividade física (sim, estou em dívida), produção ou suplementação de vitamina D (já fiz e acho caro, mas ainda bem que temos sol disponível; é bom sempre procurar se informar do tempo ideal para receber a luz sem danos à pele) alimentação menos agressiva (evitar alimento processados e ultraprocessados ajuda bastante!); e a conversa, um canal de afeto sempre faz bem para colocar pra fora o que esteja sentindo. O equilíbrio emocional é uma expectativa mais difícil, porque, sobretudo, em tempos complicados que estamos vivendo muito foge ao controle e alguma coisa não depende só de nós mesmos. O importante é procurar ajuda se você não souber como vencer isso sozinho.

4 de março de 2021

jiboias em março

nesta manhã não foi o ato de acordar
que me fez acreditar em novo dia;
nada foi tão novo,
pareceu até dia repetido
como tantos outros,
e à noite,
à espreita de minha mão tremida,
sosseguei-me dentro de mim
como uma jiboia após devorar galinha-
há alguns dias sem me alimentar -
mas de onde vem rara energia? -
porque a fome ficou ali no começo da paz,
no fim do sossego por esta mudez,
não se fala de boca cheia! -
e qual semana terei força ao acordar? -
ainda que eu tenha os cacos espalhados
para organizar este vidro partido:
o anel que ganhei no dia já esquecido.

22 de janeiro de 2021

Viver é melhor que sonhar

Alguém que me escuta, que se importa. 
Alguém que me disse uma grande verdade,
Não de satisfação;
Aliás, bem pelo contrário. 
Verdade é a de cada um: 
Engraçado é que a nossa foi parecida. 
Que sorte. 
Estamos vivendo esta verdade.
E é só mais uma, mas é nossa.

15 de janeiro de 2021

Nanopsiqué: 2021

Estou cansado das minhas convicções. Nunca estive tão cansado delas quanto no tempo de hoje. Elas têm me restringido a este mundinho absorto que me faz distrair quando mais preciso ser atencioso - com o outro, sobretudo. Estive tão empolgado com o meu jantar que muitas vezes me esqueci de quem tem fome. Estive tão imerso na minha insônia diária que me esqueci de quem estava dormindo e incomodei com agonias minhas. Sim, foram minhas convicções, os pensamentos - muitos disfuncionais - que me jogaram num comportamento incansável de ser eu mesmo e esquecer-me de quem ao lado esteve. E do lado da lembrança muito mais do outro do que de mim, foi na minha dúvida, esta incerteza que me fazia buscar, portanto, certificar-me da minha ignorância. Eu odeio permanecer na ignorância, no entanto as minhas convicções foram danosas; necessito atualizar todas elas. 

Fui convicto e nunca venci. Seria vaidade estar invicto, mas por quê? Tantas perdas, materiais, por minha mente cansada da convicção e outras questões mais graves: o vírus, o diabo que a gente cria como quiser para ter medo e se esconder debaixo da coberta escura que transfere a escuridão onde fica mais fácil justificar de não ter visto, de não ter mais opções do que sentar ou deitar e corroer até o fim do drama. É finalidade, pois, coerente transmitida pela culpa, um antígeno plausível e mais justificação, e mais, até nos encontrarmos doentes. 

Estou doente faz alguns dias. Mais perdas. Tem a pressão de aqui e de acolá, onde dirija o olhar, os ouvidos para ouvir mais cobrança: um cacho de uva, um casco de cera, um copo de água, uma vela para iluminar o buraco onde vou me meter, cansado, e comer e beber, derreter com o calor do momento e me arrastar pelo chão como lava de parafina que se deslancha no mais ridículo material que resseca e se desfaz com qualquer intempérie. A convicção não me fez forte. É verdade.

Estou com o rei na barriga e falta tanta coisa que nem uma coroa de espinho, nem um trono de folhas secas e armação de gravetos. Nada da natureza eu tenho conseguido reaproveitar para criar um império fajuto, para destronar culpa, segredo, mito ou essas metáforas que vão nos colocando num cercadinho e nos empilhando como discípulos de submissão e temor. A convicção não me fez sábio. 

Agora preciso sanar tantas dúvidas: reavaliar esses dias, essas palavras, essa correria. Tudo escolha minha, tudo, convicção em xeque. Agora ficar uma pulga atrás da orelha, coçar para achar a necessidade vital; e na hora que vencer o cansaço: vem o sono e, ao acordar, arrumar esta bagunça até aqui. 

Obrigado pela tua parceria; e a gente ter se encontrado, convictos, no que restou: novas ideias para novos rumos, bem longe das convicções que nos passou rasteira. A convicção que sobreviveu, que me fez prescrever o remédio para minha cura. Como quem escreve, curado. Será o texto mais importante do que essas lamentações que andei a escrever. Já fechamos uma boa parceira para uma história nova (nem melhor nem pior: nova; basta).

30 de novembro de 2020

Receita de mito cozido

Eu não sei por quanto tempo a gente se interessa por esta vida às pressas para tudo ocorrer e correr bem. Quantas vezes forem necessárias, repetirei os bordões de um cansaço há muito já cozido, ecoando nos versos-grito. 

Da quinta-feira em diante, a de antes, quando eu te falava sobre sangue e sal, passei a discordar de tudo que não fosse contribuir para os ingredientes. Então veio uma disfonia com acordes de resistência, medo, e teus olhos pedindo mais biscoitos da sorte. Na sexta-feira um alcance maior, aquela experiência de gaiato no navio mais sofisticado em seu passeio pelas Bahamas... vieste no sábado, em teoria, mas na prática, o domingo estava na sala de estar - já entrando, mais que estando - quando pediste socorro naquela agonia toda da tua mais-valia, do teu cuidado, do teu carreiro e o teu apego ao destino.

Eu fiquei agonizando na experiência de fronteira: do meu lado certo, já tinha incerteza; do teu lado, eu só queria caminhar... sabes, ouvir tua voz em meio a esses ventos coloridos de tinta em pó incomodando que eu olhe adiante, como a promessa do arco-íris. E não soubeste da metade das agonias, ainda: do domingo, da madrugada, da vida inteira intercalada como furos no navio em que vão doutores, ex-amores, o armário de outrem, o terceiro sentido do movimento de translação. Transladam corpo, alma, crenças: vaivém das chegadas e partidas.

Poderia pensar no futuro com a ansiedade de sempre, em querer criar cálculos de memória, anotar cada moeda que eu investia, citar Camões e algum pretexto. Poderia, mas não. Chamaria o presente tempo dos justos buscando ajustar horários, conciliar as dívidas com o fornecedor de lucro. Já esteve passado mais que cru o envolto tempo em banho-maria. Ouve o relógio na parede rebocada. Só isso.

Quem disse que tua mão não encontra a luva? Quem me disse que a cabidela salgada dos sonhos cozinhou a mais de cem graus? Quem partiu depressa ao Oeste foi atrás do que não tinha. Quem ficou no continente quando eu parti já arrumou dois tamanhos diferentes para seus trajes. 

Não sei de quanto tempo se fez o perecível.  Esta comida pelas beiras foi alcançando o prato frio. Porque andei pra lá e pra cá sem notar a circunferência. Deu-me prazo o oráculo das friezas para que eu devolva cada cubo de gelo que pedi para conservar: eu, a minha verdade e a vontade de te ver fora deste caldeirão. 

26 de agosto de 2020

Dança do foragido

nada prometi pra ninguém,

ainda assim tenho compromisso

guardado em cartas na manga; 

vai que receba golpe às costas

então justificaria meu sumiço:

talvez a última lembrança 

de um verso em branco

pra seguir o baile que cansa.

2 de agosto de 2020

Internet das coisas

Para além da iconografia dos anos 1980, sendo filho desses, talvez mais entusiasta do que deveria, reconheço a comodidade do streaming possível hoje em dia. Minha operadora de telefone celular me deu, no pacote, acesso a uma dessas plataformas de música. Fim de semana é um tempinho de preguiça, a gente se mete no casulo confortável da cortina de fumaça que nos esconde do caralho a quatro: lobo em pele de cordeiro, asno gerindo o Executivo federal, bichos diversos. Padrões de dados conseguem ser mais que gatilhos quando reúnem a matemática com a resolução de sentidos abstratos, algoritmos vêm e... tome, joga "Eternal Flame" bem no centro do marasmo de domingo. 
Havia uma época em que a energia elétrica era mais essencial que sinal de dados móveis. No entanto, quando era interrompida, no aparelho Nokia de tela dicromática, só nos restavam Snake Game e as duas bandas de rádio na penumbra. Quanta falta fazia o led, hein?! O barulhinho insuportável daquele jogo me irritava absolutamente. Modo silencioso. Ligar a rádio, pensava. Eu gostava da Antena 1 (ela ainda existe?); fui abduzido pelo poder do streaming, olha aí! Nem tudo está vencido, algumas coisas dos tempos outros são mais interessantes, digamos, mais profundo que o subcutâneo. A solidez de uma infância marcada mais pela televisão do que o rádio, esse supria em momentos sem eletricidade, porque aquela não funcionava sem ligação aos 220v. 
Gostava desse contato universal que a rádio me dava com os sentimentos universais. A inocência abestalhada daquela época era osmótica. Não fosse isso, jamais engatilharia os pandêmicos 2020 com quase duas décadas atrás. Era uma adolescente inquieto, rebelde no máximo em jogar água oxigenada no cabelo, aos quinze, e ficar com o alaranjado passeando entre o caminho da escola e a minha casa. Não bebia álcool, não fumava planta alguma, não namorava ninguém, não fazia sentido externamente ainda que houvesse já rendez-vous doideira que só saía da cabeça a um caderno Tilibra em que cada folha continha uma dízima, aquela fração de um universo esquisito em que passeavam os mais monstruosos bichos ao som de um ornitorrinco preso num apartamento de aproximadamente cem metros quadrados. Já lia Sartre - As Palavras - e entendia porra nenhuma, mas foi um avanço, porque me deixava curioso e de brinde, veio-me Simone. Casal porreta! Eu não tinha computador em casa. Acho que pouca gente à época tinha. Eu só conhecia os do colégio Marista, mas não estava ainda conectado com o mundo lá fora. Fazia valer cada instante na televisão e, à falta de eletricidade, o rádio. Que pavorosa aquela situação. Ter que suportar aquela geração que me fez usar toda aquela ridiculosidade do tênis camurça preto e desfilar umas mochilas horríveis com meia dúzia de brochuras dentro. Ridículo eu era com aquele cabelo laranja ao entrar na sala ouvir o bullying na canção coletiva de uma dessas novelas da Globo. Estão todos perdoados; deus, inclusive, também o está. 
Ah, deixe-me correr desse tempo, possibilidades neoliberais começavam a perturbar-me ainda mais com a iminência de um tucano governando. Então fico nesse devir, ininterrupções nos fluxos do tempo, que agora tenho, entre a fatídica lembrança de uma escola cristã em que a menina se matou no banheiro com um tiro no peito e, ainda assim, toda semana parecia que a comunhão tinha sucesso. Soube que até hoje fazem uma festa de confraternização, uma pequena micareta para a gente encher a cara e tirar autorretratos com frases de efeito. Até parece... tudo irmão ali, sob a fragilidade dos afetos e uma lógica capitalista cada vez mais ferrenha. 
Voltando à preguiça deste domingo, que junto à covardia, são razões e impedimentos para que humanidade avance. Juro que não vou me furtar de beber a água dessa gôndola, porque ela custa apenas duas moedas do parco dinheiro. Já somou? No fim das contas... tudo líquido se dissolvendo rapidamente. Ficou essa meleira imensa, lamacenta, porque, segundo outro engano, sou signo de terra, regido por Saturno e seus anéis de vidro, hoje todos quebrados. Trago a poeira do barro e sopro na cara de quem desdenha minha situação discursiva de falar "sustenido" em vez de hashtag, e sou metralhado por colocar ponto final depois de cumprimentar, num aplicativo de mensagem instantânea, com um "olá" convidativo para prosa sem fim, se me permitir. Não sei, nunca dura mais que uma estação do ano. Então vamos colocar culpas no papo de otário, como "constam nos astros, nos signos, nos búzios..." e como constam nos manuais da próxima ética aguante e o espírito do capitão. Com certeza, para mim, há algo de mítico no início de tudo, quando ela cantou "close your eyes, give me your hand, darling..."