31 de dezembro de 2017

"Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro"

Salve o último dia de nossas vidas! Para que tanto? A rotação continua seguindo a mesma lei há milhões de anos, mas tudo isso é um simbolismo mágico que nos embriaga de forma metódica, com os olhos grudados no ponteiro do relógio. Da minha parte, as mesmas regras, também. A saber:
Sigo o mesmo transtorno obsessivo-compulsivo dos meus números pares, talvez ser par, em mim, tenha um significado mais real por andar neste mundo de mãos dadas com a nuvem de algodão que acreditei na infância. "Por onde for, quero ser seu par", como já se cantava numa música aí. E mesmo que ser ímpar denote a sublimação de algum individualismo genuíno, a solidão ainda continua a fazer um dano que só eu sinto, ainda que algumas pílulas me façam esquecer delas durante certas horas de um dia.
Também tenho o mesmo ritual, que acredito ser minha religião anual, quando saio de casa: ponho a mesma música a tocar no fone de ouvido, por repetidas vezes, digerindo cada palavra de uma poesia cantada que parece, mesmo, ter sido, para mim, feita. Incrivelmente, a mesma que me sacode no caminho ao trabalho, à escola, como impulso ritualístico de sorte, fortuna, mas também, para encarar ritmadamente os percalços do caminho, seja qual for meu trajeto, geralmente sozinho, momento em que a música toma o lugar daquela nuvenzinha para me dar a mão e fazer presença.
Pés cansados, um deles dolorido por um tombo ao fim de novembro, que me rompeu uns ligamentos do tornozelo, que, assim, são alguns dias seguintes a sentir a dor no passo a passo que é outra regra ensinada na vida. Pisar dói. De um jeito ou de outro. Andar mediante a dor ou a ausência dela é este sentido direcionado para cumprir um papel de caminhante, de acompanhante, de filho, de irmão, entre os melhores títulos conquistados com o meu sangue ou meu sorriso, talvez até por minhas palavras ou meu silêncio que só poucos entendem.
Foi um ano difícil, de decisões favoráveis, desde este momento em que a ótica é outra e já consigo ser grato. Mas dias atrás, eram as lágrimas que não me deixavam ver a vida desta forma. Porque parecia que o oposto dela era quem vinha querer dar-me a mão em tantos momentos em que eu buscava qualquer elemento vital, no mundo quimérico que me restava, mas não encontrava a companhia; desaguava em mim o turbilhão de impaciência e visão turva. Se é possível, então, renascer, por simbolismo ou necessidade, quero multiplicar-me nesta vida, só uma, na companhia espontânea de quem acompanha atentamente cada passo meu e não mede seus passos para fazer-se par, quer para uma dança, quer para sentar num canto qualquer à exaustão. Aos presentes, o futuro nos reserva sempre, além de datas, desafios para entender a vida é um fluxo contínuo. Quem sabe haja filtros, e quem sabe o que seja naturalmente puro torne cada ano mais um, e único.

19 de dezembro de 2017

Cor de cinza

Restou-me o oxigênio de cada dia; na verdade, pela manhã, saber que estou respirando se tornou o pulsante reagente de todas as coisas que ficaram após o incêndio à noite. Porque normalmente estamos gratos por coisas habituais que de tão triviais já não mais pensamos: como o prazer de respirar. Seja profundamente ou leve como o que se inspira e expira tão comum, tão sem explicação. 
É muito doido pensar nos pormenores das coisas habituais, quase mecânicas. Às vezes, comer por ser a hora da refeição, andar porque existe uma direção rotineira todos os dias, no ir e vir banal de todas a gente. No entanto não ignoro eventos sórdidos como o combustível que se ateia no calor de uma ideia, pouco a pouco e sempre em frente quanto esta rotina de esperar, andar, ir, vir e reagir com o fogo. Deixar queimar, aquecer, consumir em chamas todo o rebento de cada explosão, um passo a mais, um caminho tomado pelo tantos graus elevados que o combustível produz de mim para alguém, e vice-versa, de nós. Deixar tudo fazer brasa, reluzir feito o mais puro brilhante com apenas coisas triviais: um acender, labareda luminosa, anti-escuridão e, ardente, tudo que solta de si em combustão. Depois virar cinzas, cinzas frágeis que qualquer vento parco leva daqui para acolá, faz seu caminho fuliginoso, um traçado gris, um percurso cinzento, vestígio do comburente, sei lá o quê mais... Já foi. 
Não há dívidas, não há saldo, crédito nos resíduos. É estar quite, também desquitado, renúncia do calor, pois acho que as cinzas é o que faz mais sentir frio do que o branco-gelo comercial das tinturas que vendem a alvura de um estado de paz ou o transparente, não se vê, não se sente, não aquece nem arrefece, só em si insignificante e sem notar... 
Uma vez me perguntei porque ficamos grisalhos, fica aquele aspecto cinza pra depois vir o branco e tomar tudo. Eu não sabia a ordem natural, nem sabia o que era bem o trivial, mas é. Hoje, sei. Bem assim: fica cinza, da frieza, para depois ficar branco e vender o símbolo da paz, do sossego, da velhice sem volta e à frente do tempo para depois, há que enterre no escuro do esquecimento e há quem creme, que pinte de cor num dia que parece nublado, cinzento como se o céu não fizesse mais ser teto num dia colorido. Foi assim quando perdi meu avô, foi assim quando perdi algum combustível, aquele exame, aquele teste, aquele vagão, dentre muitas perdas, que muitas ficaram no esquecimento e outras encheram-me de saudades, de cor vibrante, como esta que meu avô me deixa há tantos anos que ainda hoje me lembro e enubla ao passo que corrói. Eu raramente choro os meus mortos depois de algum tempo, mas eu sinto que quem morreu já precisava sair de cena, quer nuble o céu, quer o sol vibre forte e queime como um incêndio que deixará todas as cinzas logo mais. Eu quero sentir, realmente, falta de algumas coisas, algumas pessoas, entes; só não vou mais celebrar com fogo e combustível, liberar tanta energia, queimar tudo para depois ser nada, só cinzas. Não tornará meu avô de volta um dia sequer que eu caminhe à frente, eu ficarei cada vez mais grisalho, cabelos cinzas para depois ficar branco, a velhice me chegar e eu, quiçá, finalmente, saiba o sentido de uma grande paz dentro daqui. Depois disso, pode queimar. Deixe-me ser as cinzas no esquecimento e o vento soprar os rastros como o fio de cabelo que revela o cansaço e a desilusão por ser apenas cinza, ou branco, demais cansado. Que descanse em paz.

12 de dezembro de 2017

O afogamento

O nobre Pedro Seixas havia esvaziado o interior de sua casa. Deu toda a mobília para o bazar que acontecia no bairro todo primeiro domingo do mês. Não dissesse que ficou nada, não fosse um único exemplar de Todos Os Nomes que Púmice Vilela lhe deu três anos atrás. Relia em voz alta; o eco que batia nas paredes e parecia ressuscitar todas as pessoas anônimas, como se todo aquele espaço vazio servisse de moradia às quais um dia foram desconhecidas. Um labirinto de gente sem nome, dentro de uma ex-casa vazia.
Desde que Púmice deixou apenas as lembranças no sofá cinza que fora vendido a preço de banana no bazar, não fazia sentido qualquer utensílio que fizesse a gente renascida tropeçar ou escorar-se. Não fazia sentido ter dois corpos ocupando o mesmo espaço, como também não fazia diferença se aquela casa relembrasse um pessoa tão injusta com sua pouca densidade. 
Pedro Seixas toda manhã, às cinco, saía para ver o mar. Na volta, abria a caixa de correios enferrujada pela maresia, onde guardava todas as doações feitas pelos vizinhos de um velho cheio de ranço e desvontade, para que ele pudesse comprar a ração do dia, que consumia apenas à tarde: a única refeição entre o sol nascente e o poente. Ninguém se metia na opção que Pedro Seixas escolheu desde a última primavera. Aliás, dias antes dela, ainda no início do terceiro mês do calendário gregoriano, Púmice - conhecida como a espuma da rocha -, que passou do ápice da taça que brindava novos tempos para alguém de baixa densidade. Substância nenhuma, sem peso na vida, boiava na água, alva, vazia, sem cor. Desde ali, desde que Pedro Seixas procurou tirar dela tudo o que enxertou em sua porosidade constante.
Não se sabe ao certo quantos dias, quanto tempo, qual exato momento ou coisa assim, já não tinha calendário, a data era incerta desde o último primeiro domingo do mês, que só e era tudo que Pedro Seixas lembrava quando decidiu dar tudo o que tinha. 
No interior de sua residência, só se ouvia sua voz alta a reler ao sol poente, quando os meninos arruaceiros riam em alto e bom som, e repetiam juntos, como a maior piada do mundo: "Conheces o nome que te deram, não conhece o nome que tens." Era o início da vadiagem do dia, como evidência de que a noite que caía começava com graça e tristeza ao mesmo tempo, dependendo do ponto de vista. Eles se iam, e Pedro Seixas, à luz nenhuma, já não repetia mais nada, a escuridão cegava-lhe ou anunciava o silêncio e o fim do labirinto cotidiano. Já não via mais ninguém, adormecia até o outro nascer do sol. 
Neste próximo, às cinco e ponto, ao sair de casa, no caminho de dez passos até a praia... era o oitavo, quase a sentir a onda tocar seus pés; quando Púmice, de súbito, provoca o intercurso fatídico:
- Pedro, já faz tempo...
E os olhos do ranço testemunhados por anônimos de casa, por vizinhos batizados com três ou quatro substantivos próprios e talvez um pouco de compaixão, que a caixa de correios sempre acusava, intimidou a reticente Púmice por cinco segundos. 
- Pedro, precisei voltar. O que me diz?
As únicas palavras de Pedro Seixas eram aquelas lidas repetidas vezes, com o olhar de ranço sobre o livro, dentro de sua casa, sem culpa ou despreocupado com o tempo e tudo lá fora.
Então duplicou os últimos dois passos - agora quatro - para fazer desvio e chegar ao mar. 
Quando o mergulho lhe lavou o cumprimento de uma liturgia diária, ainda sem responder a ela, uma sequer palavra, mas os olhos confiados no gosto agre só admitia o horizonte à frente. Todo o mais, inclusive ela, fez-se transparente e provocativo, como vento agressivo 
Quando Púmice decidiu ir além da permissão dada por um olhar que a advertiu. Entrou no mar, provocou a dor - uma vez mais - sem dizer mais nada. 
Pedro afogou o que ainda restava do tudo de si permissível entre os poros dela que coubesse até ali. Sem dó, com densidade, enterrou na água salgada o que restava de si naquela vítima que as palavras, obrigatoriamente caladas, transformaram em bolhas de ar até se dissolver e integrar ao seu melhor lugar: o chão por baixo de maré mansa. 

10 de dezembro de 2017

Asseio

Já faz algum tempo que perdi a fé num lugar melhor,
numa conexão entre mim e uma força maior do que eu
e em tudo isso que deem o nome do que quiserem.

Tenho, mesmo, ocupado-me em perdoar templos arruinados
que fizeram esta poeira toda subir.
Tenho passado a mão no meu rosto suado todos os dias
e sentido que se lava desta forma.

É porque aqui dentro sujeira e limpeza são sempre discordantes,
e o bastante para formar ciclo de asseio.
Encerrar um e começar outro.

4 de dezembro de 2017

Café das pazes

Eu não consigo lembrar que estação do ano era aquela, pois realmente ela não importava. Se estava frio ou se estava calor era o de menos. Sei que fiz aquela viagem e, de repente, eu me encontraria naquele lugar outra vez, cheio de lembranças, medo e alguma coisa mal resolvida. A sensação era esta. Comigo estavam pessoas simpáticas falando de coisas que eu sequer sabia o nome. Enquanto eles falavam, eu observava aquelas casinhas charmosas e as ruas antigas construídas a um tempo que estava distante de tudo que eu imaginava e vivia. Fui. Fui àquela praça e o único rosto conhecido era de um colega que parecia sempre tramar uma armadilha, uma surpresa. "Que tipo de teste era aquele?", foi o que pensei à partida. Mas depois não me preocupei mais com isso, apenas andei. E foi, então, que me convidaram para o café mais fino da cidade. Só consigo me recordar da fachada em madeira escura com detalhes rococó. Do lado de fora, na esplanada, havia umas três ou quatro mesas juntas onde um pequeno grupo de jovens senhores e senhoras, sentados, riam de alguma situação que meu ouvido não conseguiu desvendar. Eu me aproximava daquela mesa e, de longe, já te avistei voltando de dentro do recinto para o lado de fora, e sentando na ponta sul da mesa, como uma cadeira de anfitrião. De costas para mim, eu ainda no movimento de aproximação. Fazia mais de um ano que não nos víamos e eu, preocupado com o movimento daquela cena, tentando imaginar quem dali poderia ser a primeira pessoa da qual eu tinha que me aproximar, puxar um assunto qualquer, talvez a viagem tão longa que eu tinha feito e, de repente, ter ali chegado como quem chegou sem mais nem porque. Cada passo que eu dava, e tu, de costas, sem me ver chegar... era o teu novo corte de cabelo que eu analisava e gostava. Achei moderno e queria que teus fios me dissessem que realmente que o tempo passou e era novo. Uma sensação sobressaltante! Foi quando cheguei, mesmo, à mesa e cumprimentei como uma pessoa estranha cumprimenta e tratei logo de procurar saber em qual lugar da mesa iria sentar: o mais distante possível de ti, era ameaça que meu coração, à medida que batia mais forte, codificava a mensagem, a informalidade e a estranheza do momento. Foi então que vi a oportunidade de sentar ao lado daquela menina, mas foi quando o rapaz disse: "há três cadeiras aqui para vocês sentarem". E ficavam na lateral bem próxima à ponta sul, em que estavas... Sem cerimônia, aproximei-me dali. Sentei. De toda maneira, por sorte, não ficaria inevitável o contato olho a olho, e eu fugiria de qualquer situação constrangedora de ter que olhar acidentalmente em direção ao teu rosto. Sentei-me na cadeira mais distante que encontrei, observando o rosto do rapaz que estava ao teu lado, observando o movimento de vocês dois... Quando te levantaste da ponta sul da mesa, foste para a lateral oposta a mim, onde havia uma cadeira vazia bem à frente da minha e te sentaste como quem resgatava o tempo e a intimidade só em olhar. Chamava meu nome da maneira mais informal para contradizer toda aquela situação. Olhaste nos meus olhos e...
Descobri que sonhar contigo ainda me deixa sem entender o significado deste novo tempo, sem perceber o que de verdade seria um reencontro fortuito e fazendo-me perder meu sono.
Levantei-me da cama para ver que a realidade pode ser diferente e perdi completamente as horas de descanso que ainda me restavam.
Paz para nós!

28 de novembro de 2017

Estado de Alagoas em matéria física

O futuro parece ter chegado um pouco tarde por aqui.
Nas ruas que ostentam seus vãos pedindo atenção a todo instante, para que se evite uma queda, um desatino. São passagem para quem tem pressa de chegar ao porvir e juntar seu patrimônio muitas das vezes cheios de arrogância - e é inexato - e uma característica cozida a vapor sob este sol que todos os dias ferve a cabeça de qualquer indivíduo com ou sem fé. Entre um Audi ou uma Mercedes, e vários carros populares comprados à época em que o Poder Público dava o IPI zero, sempre há uma carroça, com um ou dois, talvez três homens e mulheres a dominar um animal que puxa sua engenhoca de madeira sobre duas rodas. Parece-me cru. Parece-me o estado mais primitivo da nossa inteligência e soberba, também, por sacrificar bichos em nome de um ganha-pão. Eles carregam em seus veículos à tração animal, ajudado a rolar sobre estradas cheias de buracos, e pegar a velocidade com a sua própria pressa, com seus parcos recursos; eles e elas querem também ao futuro chegar, a algum lugar, transportando metralhas ou a desprezada sabedoria diante da tecnologia alemã, estadunidense ou outro gentílico que inventou seus automóveis, em certas ocasiões, assassinos.
Cada estrada está praticamente esmagada a cada meia década por uma nova construção que, por cá, muitos chamam de avanço. São escola bilíngue, consultório, apartamento com acabamento de primeira linha (mármore ou granito) e até casebres, que estão distante da brisa marinha, onde nós, o povo maceioense, costumamos chamar de periferia. Mas há uma só verdade, seja ainda de barro, seja pavimentada, as ruas são as artérias coagidas por tecido concreto, com esquadrias de alumínio ornamentados com os mais variados vidros e espelhos. Espelha-se no moderno sempre o dano venoso onde correm os passageiros, os condutores e até um menino que escolheu o lugar mais perigoso para jogar sua bola. Tecido dinâmico de uma cidade que se movimenta noite e dia... para onde? Toda a gente cozendo na maior parte do ano sob o mesmo sol que queima as cabeças ateias, cristãs, de matriz africana ou sem matriz, totalmente sem identidade local, querendo ser igual a outrem, bem além dali. Daqui. Em qualquer lugar sempre há um embrião gourmet, com prepotência universal, com boçalidade cosmopolita. Surgem espaços onde alimentos fornecem ao fetiche a intenção de transformar esse presente disperso naquelas vielas ou nas avenidas da moda uma torre de babel gastronômica, enquanto o homem que rege sua carroça do passado pode parar para tomar um caldo de cana com um pastel em um ambulante, de um mercado informal. São contradições do dia a dia, sob o mesmo sol que torra a cabeça da linda loira que saiu do salão de beleza com os fios de cabelo cada vez mais transgênico, cada vez mais fenotípico. Ela passeia sua beleza feminina da porta do local até o seu carro sei lá pensado onde! Ela veste uma grife italiana, ela é alagoana, como eu, mas ela está cozida como todos nós. Ainda que ela se vista com detalhes em "filé" ou "singeleza", de uma outra alagoana aí, popular entre os astros de constelação televisiva; ela continua cozida, enquanto, no Pontal da Barra, as genuínas mães ainda ensinam suas filhas o que é permanecer crua, andar na rua de cabeça erguida, sentindo a brisa lagunar de Mundaú.
Maceió tem em suas águas o paraíso de um slogan perene até o dia que o sol que ainda cozinha nossas cabeças faça mudar o estado físico da matéria. Já que se evapora o que fomos em nome do que nunca seremos, ainda que sigamos cozinhando os miolos com o olhar para o Hemisfério no qual jamais coube um pouco de nós.

22 de novembro de 2017

O nome dela

Lembro-me bem do dia em que eu estava no salão, onde Sônia, a cabeleireira, interrompeu o corte da tesoura para eu atender àquela chamada. Era minha irmã que trazia a notícia de que estava grávida, acabara de saber. Não contive as lágrimas, que Sônia e meu amigo Marcos presenciavam no estabelecimento no centro de Campinas, em São Paulo, onde eu morava.
Quando Ana Beatriz chegou ao mundo, eu estava em Maceió, comemorando com a família a chegada da minha primeira sobrinha. Acho que foi um dos momentos mais especiais da minha vida, eu nunca tinha experimentado esta sensação tão difícil de descrever com palavras.
Já se passaram mais de quatro anos, e acho que é o tempo determinante para escrever o quanto de significado esta vida tem à minha, da forma mais simples, sem lapidações, apenas com o que minha cabeça, neste momento, consegue formular. E por que não dizer que é um exercício de gratidão, sentimento reforçado a cada dia pelos motivos que só eu sei que existem para que jamais me esqueça desta presença. Além dos agradáveis e incontáveis momentos em que ela fez de vazios espaços cheios de vitalidade, de agonias fez apaziguarem instantes de dor e de perda de rumo deu-me a direção correta das minhas melhores e mais deliciosas escolhas.
Preciso lembrar-me do desenho esquisito no papel sobre minha mesa, ao chegar a casa, ter regalado de essência um dia cansativo e que parecia sem fim. Preciso também catar na lembrança qualquer singelo passeio que fizemos pelas ruas vizinhas a troco de nada, de passar o tempo e de fazê-lo tudo. Buscar no álbum da memória a imagem mais bonita que carrego comigo, quer meus olhos abram de atenção redobrada ao pânico causado pelo medo nesses dias insanos, quer meus olhos fechem para derramar lágrimas quando me sinto fraco nesses dias onde a força às vezes entra em colapso e diz... melhor não dizer. Muito melhor é encher meu peito de ar como quem respira o cheiro do seus cabelos loiros escuros e fixar o olhar na imaginação desses olhos verdes, tão lindos, que às vezes penso ter uma boneca para brincar, mesmo que o mundo diga que meninos não brincam de bonecas.
Quanta bobagem andei pensando, quantas consultas eu estive procurando para encontrar, com ajuda dos tais doutores, uma solução imediata para o que quatro anos já bastam por sentir-me curado no abraço dela. E quanto de mim se foi nos intervalos longos enquanto me fizeram triste e ela estava tão acercada, mas eu perdia meu tempo me distanciando daquele amor que só pedia carinho e atenção.
Não sei se por negligência minha, da que me fez tolo, mas compreendo tais perturbações que venho tendo, pois elas diminuem quando volto meu olhar sereno e firme ao âmago que nasce no ponto fixo, seja na parede do quarto ou na almofada recostada sobre a cama, esperando o dia em que ela volte aqui para contar as coisas de uma menina.
Fico a pensar se nesta idade que ela tem agora, nesta etapa da vida, é melhor do que viver à desconfiança do homem que mente e engana, e descobrir que as coisas não são exatamente como parecem. Que a imaginação é apenas um mundo de sonhos infantis que podemos criar livremente, embora existam à espreita interesses mais hostis querendo penetrar a camada mais frágil e chegar ao meio para vender qualquer coisa: uma ideia, uma situação, um brinquedo... Fazer lucro sobre a inocência de uma criança deveria ser crime hediondo, mas há leis em quais não posso intervir.  O tempo vai passando, como para todos nós, e logo ela descobrirá tantas duras verdades, como para mim foi choque, chegou a ser queda, física e mental. E para este tempo só projeto meu sonho de estar ao seu lado a contar sobre coisas minhas, que sua idade ainda não permite entender, até que ela saiba que amizade é algo bom, maior que nossos laços consanguíneos. Nesta ocasião, se a vida me permitir, ela saberá o quanto foi determinante o amor que nós construímos a cada oportunidade convivida e partilhada, sobre as quais foram erguidos tantos porquês à afeição rija, mesmo que amoleça meu coração só em pronunciar o seu nome.

20 de novembro de 2017

Lázaro de Betânia, Provença ou República dos Palmares

Uma conexão no Aeroporto de Marselha, duas horas, e sem cigarros no bolso. Um café e um croissant; depois, uma pequena caminhada até o outro terminal em busca de uma loja de tabaco e uns minutos de distração. O coração de quem, confundido com um leproso, tornou-se pobre numa Provença de riquezas marítimas, a cruzar a fronteira pelo céu de mendicância e saciedade. Sou Lázaro refugiado na intermitência do amor que se locomove entre o túmulo e a vida asséptica, um banho de sol e uma voz para ressuscitar do lugar em que faz de Betânia um pequeno espaço num oceano imenso de incertezas.
- Vem para fora! Levanta-te e anda...
As muletas que suportam o peso da minha consciência como quem intercambia de um posto a outro, entre são e salvo e um morto qualquer, confundido com alguns indigentes. Quem se tranca numa caverna, adormece ou morre, ou se fecha o armário das relíquias indecentes, ora de grande valor, ora tão sem nobreza como bilhete de companhia aérea low cost
O tempo é confuso, entre as tapas sevilhanas e os tapas universais - dores comuns a quem se deixa bater forte até cair, sem equilíbrio. Oferece outra face e guarda os estalos a cada golpe da ocasião. Conto "um", "dois", três"... quatro dias a cheiro mórbido de um lugar escuro onde descansa um corpo cansado e uma mente sadia, oscilando, mas sadia, ainda. Equilibrando a emoção na ponta do pé; e dos pés à cabeça, continuo sendo o amor daquela canção de 1971. 
Eu acredito, mas já não tenho fé. É tanta mentira que a morte parece se achegar todos os dias ao pé e subir às pernas num movimento de uma lagarta, em sua escalada de sobrevivência para se alimentar, deixando rastros de morte no verde que deu cor à vida e foi o xilema que fez chegar a esperança a todas as partes de um ser. Confundo-me com o estado vegetativo e a promessa do milagre, nesta cidade que jamais verá um morto ressuscitar. Ao contrário, estatística de violência faz levar vidas tão cedo, seja por fatalidade ou negligência de um pronto atendimento sonegado à população. Cá estou, na terra de Zumbi dos Palmares mas comandada por oligarquias terríveis, coronéis que mudam de profissão ou de partido a cada quatro anos.
Desde a América do Sul à Cisjordânia, e sim, aquela do Mar Morto... Desta mistura de exodus, o balsâmico, lenitivo, até o Sul da França, na costa, a sentir o cheiro de lavandas sobre corpos mediterrâneos, transeuntes, em apenas duas horas, comendo aquele croissant frio e bebendo o café forte, para despertar meu corpo para mais um voo, que melhor caísse sobre os Pirineus, do que encontrar farejantes fariseus remodelados e à espreita da minha má sorte por andar e querer amar, um pouco mais, ao dezembro último andaluz. 

16 de novembro de 2017

Vertical

Dominar a arte de equilibrar-me sobre o fio da meada,
Tecer caminho e camuflar meandros de um ou outro tombo
Na passagem por dias longos,
Pois que a longevidade, a mim, nunca foi um forte;
Mas chegar perto do horizonte é a razão por que todos os dias
Há nesta posição o maior prazer: vertical.

30 de outubro de 2017

Castelo

Alguns instrumentos de trabalhos são pesados demais e difíceis de manusear. Penso no ofício da construção civil, que exige técnica, força e a habilidade de lidar com o futuro - esse lugar que posteriormente vai ser uma edificação em que habitará um sonho de empreendedor ou um lugar que alguém deseje chamar de lar. Um construtor trabalha em três tempos. Na elaboração de seu projeto na execução deste e o quão distante de manutenção ficar por mais tempo, para quem habita, melhor. Agora penso em mim como construtor. Aquele que elabora um projeto de um castelo, embora eu acredite que o sonho parede a parede não me remeta aos traços mais intrínsecos da medievalidade, sistema que ruiu na sua própria ganância, na separação de povos e na covardia da exploração. Na verdade, castelo é o que meus tempos de menino, minhas leituras da infâncias, os contos que trouxe quando aprendi desde cedo a sonhar emergem no homem que sou e imaginam a imponência que a palavra traz. Sim, eu gosto dos meus castelos. Apesar de que todos eles hoje desabaram ou mesmo restam apenas vestígios de abandono.
Não consigo me recordar de quando construí meu primeiro castelo, talvez tenha sido na escola. Mas a escola é apenas o vestígio do que sou e acompanho atualmente. Ela, agora, por força de leis e tamanha safadeza política vai se transformando numa oficina arbitrária para formar objetos quadrados que se encaixem e vão se amontoando até culminar no esperado setor produtivo, alimento do castelo de suseranos contemporâneos. São as muralhas que se oprimem entre si, são oprimidas por motivos de força maior, ressignificação de domínio, e protegem alguma autoridade medíocre entre concretos e cercas elétricas ou uma força de trabalho diminuta, de pé, olho vigiando o patrimônio alheio. A escola tem formado objetificações e projetando dramas cada vez mais complexos, sempre levados à frente até a hora de arruinar. Sabe-se lá quando...
Também tenho uns três ou quatro castelos onde depositei suor, sangue e o peso da minha consciência. Uma instituição, por ora, sem nome, mas costumei chamá-la de... na dúvida, melhor nem evocar o que não há mais nome! Será que usei insumos caducados, verbos arcaicos e o alicerce fora de padrão? Sei que nunca trabalhei com pré-moldados, essas questões jamais caberiam aqui e acolá da mesma maneira, nem costumei previamente transportar de um lugar a outro os itens de uma construção civil. Só me lembro de movimentar-me de um lado para outro levando em mim, sim, talvez o rei na barriga, meu estômago inteiro no fluxo, na ilógica do contrafluxo... já sei de onde veio este refluxo! São castelos desmoronados e mal digeridos. talvez na pressa da ocasião, razão pela qual suportei escândalos miúdos, somados um a um, uma catástrofe estomacal. Mastiguei com os dentes nervosos, engoli cada sapo travestido de príncipe, mitiguei todas as bruxas soltas, pestes, qualquer assombração feudalista.
Talvez eu aprendesse melhor como nativo a preferir oca. Castelos ocos caem com vento e com a chuva, mesmo com a melhor engenharia, com o avanço da construção civil, qualquer uma ideia nova e passageira não resiste se não passa a ser lar. Por enquanto, eu coleciono um bocado de derribamento e talvez precise mudar a Idade. 

26 de outubro de 2017

Dulce Zero

Oxítona em sua redoma de vidro:
Esther numa revisita meio século depois.
Açúcar no futuro, doce insumo dias atrás.
Fez da travessia com papel à mão
Contra amargo sumo bebido
Nos idos anos, sentada na cadeira,
Quando à beira do objetivo - seu livro -
Se lia ideia para ser, queira ou não queira.

Enquanto sua mãe cortava as mãos
Na lavoura dos patrões,
Ela lia; comia letras; bebia água.
Escorria no canto de sua boca
Uma gota de ódio, por que não?
Entre um suspiro e outro de ar e fuligem.

Foi a número um na doutrina.
Foi atrás de quem desse trela
À conversa, à quimera, o trabalho e o campo;
Dois cantos e muito para quem vivia
Numa senzala alugada por quase duas décadas.

Antes do prêmio, um mistério.
Negra como a noite, 
Meiga como açoite 
No âmbito feminino entre muitos homens
Que dominavam o corpus,
Ela produzia num tubo de ensaio
Como quem improvisa sem treino,
Sem piedade e sem oportunidade.

Dulce Zero, minha querida,
Vingarás os agres do agreste
Do latifúndio e da cana caiana,
Dos donos da cana, dos cabras da peste,
Dos mercados consumidores,
Dos farsantes amores...

Flor da minha imaginação,
Minha botânica e minha menina favorita;
Planta de oração doce,
Perene herbácea sem tronco 
Com raiz rizomática...
O jardim gramíneo todo de volta
Para ti.
Toda a sedução das formigas,
Na guerra,
Por nós.

25 de outubro de 2017

Quando nasce o bailarino

Buscava incessantemente falar pelos cotovelos, dizer a todo tempo alguma coisa sobre algum assunto toda vez que não queria escutar aquela voz do outro lado da parede.
Havia uma barreira que dificultava entender; não conseguia captar um verbo sequer, mas sabia que ali do outro lado havia alguém a dizer e, às vezes, até cantar. Mas não entendia. Não percebia e fugia daquele ruído constante com agressão de quem falava mais alto para vencer a competição de entendimentos. 
Na hora de deitar, o silêncio era mais perturbador de todas as horas. Punha o fone de ouvido, para escutar... sei lá, gemidos, música, piada, desenho... até a hora que o sono chegasse e não tivesse tempo de novamente experimentar o que escondia aquela parede de transtorno. Dormia como um deleite de um fino fio de lã branca a ponto de arrebentar, todos os dias, com a força do som. Até de manhã, quando ele partia, era a hora de acordar e novamente entrar na corrente de elos ligados por um discurso político, um papo de otário, um grito ao sol, ou, se chovia, uma canção desafinada na voz para embalar a queda dos pingos d'água.
Tomava qualquer inciativa, depressa, sem pensar: ia... em frente ao mar, ouvir as ondas se debruçarem sobre a areia quente enquanto criança brincavam, construíam seus castelos até vir a maré alta e arruiná-los. Ou ouvir os cães latindo felizes ao se juntarem ao coro infantil de uma brincadeira na cidade litorânea.
No caminho entre a casa e a praia, o fone de ouvido plugado ao telefone repetia a mesma canção de três décadas atrás e quatro casas regressivas no jogo de tabuleiro de ir e vir até chegar ao pódio.
Chegada. Chegado a casa, direto ao banheiro, o barulho da água do chuveiro escorria e novamente a parede, esconderijo de canos de pressão que lhe jogavam toda a força do banho, também ali se ruía o mais temível. Às vezes, a solução era cantar amadoramente um lindo refrão do corpo pagante ensaboado, com espumas de limpeza, alvura necessária para desinfetar a maresia toda grudada na pele morena clara. Queria até do friccionar da toalha enxugando o corpo para o próximo ato, escutar o mínimo atrito entre pano e pelos, entre peso e pano, entre pano e pano pra manga desse contínuo caminho até o barulho mais poderoso.
Desejava trovões fortes, até mitos da tempestade, desejava apenas; mas o verão se aproximava e a existência tempo nublado parecia a cada dia desistir de ajudar.
Zumbido, ruído, barulho, ringtones, apocalipse, trombetas, corais de anjos, demônios, insanidade, qualquer transe, qualquer trânsito caótico, buzina na esquina ao engarrafamento, qualquer, mesmo, que fosse a qualidade de som, que fosse bem-vindo.
Até o dia em que pegou o martelo e detonou todas as paredes, e só existia o chão, que oportuno ao som que queria, provocativo, insinuante, testar o último recurso de se esconder, agora embaixo de tudo, para sussurrar (que fosse), mas deu sorte de saber, que estar em pé, pisava o inimigo mais ruidoso de todo universo. 
Foi, então, que se viu sem estar cercado, o inimigo que estava ao lado, agora pisado no chão debaixo de sua sensação mais feliz: por cima, na estreia de seus novos sapatos; um sapateado improvisado, produzia a dança mais esquisita. Sem palco, sem público, mas no movimento do corpo vitorioso que venceu o som tenebroso, quando nasceu de novo. Fez-se um bailarino e calou. 

18 de outubro de 2017

Mrs. Sylvia Plath

Todo cheio de vincos dos derradeiros dias -
Marcas, dissenção, sobreposição, envergadura -,
Esses remendos que coseu dona Sylvia
Com letras e sulcos - nossas identificações.
Um beijo dela toda noite em minha testa,
E, de manhã, esta derivação regressiva impronunciável
Não foram o bastante para me levar daqui,
Mas intermitente febre e pujança que,
Durante o sono, fizeram me encolher na cama
E me sentir novamente no útero quente de outra dona.



****


I am absolutelly full of creases by the last days -
Marks, dissent, overlap, wingspan -,
These patches that sewed Mrs. Sylvia
Using letters and grooves - our identifications.
A kiss from her every night on my forehead,
And, in the morning, that unpronounceable back-formation
Were not enough to get me out of here,
But intermittent fever and vigor that,
During sleep, they made me cringe in bed
And feel myself again in the warm womb of another mistress

12 de outubro de 2017

Prazo

Do tipo que apostou na preponderância,
Como sempre, e quase cansado de esperança,
Fosse apenas uma falha, fosse apenas uma...
Foram tantas outras em seguida, de passos em pressa,
Já não interessa um por cento de quase nada.
Foram tantos outros passos em direção oposta.
Mas, para quem aposta, ainda acredita
Que a vida leva e traz o que deve ou não ser.

Foram mais e mais metades ou partidas de ócio
Do tempo que me deram ossos de tempo em tempo,
Quinze minutos antes do sono ou alguns segundos afins
Desgastados pelos ventos do norte, e fragmentos
Feito um limite a preencher por várias vezes,
E pouco de cada vez... não bastasse o restinho de tudo,
Seria mais cedo ou tarde viver sem saber.

Contudo o pensamento precisa ser dito,
Sabido é particípio inicial de alguém - coragem! -,
Ainda que doa, ainda que nada seja doação completa,
Transborda a meta do teu medo arredio de entrelinhas, só elas...
Quanto aos meus termos que conclamam desejo,
E fúria desde quando não fosse logo tão longe de mim,
Não fosse a opção incerta a ausência de dúvida,
Estaria certo de que fascínio era a medida exata.

Mas quando se encosta na paciência cômoda
De teus intervalos, e se incomoda com brevidade,
Depois se irrita com demora, e não se comemora
Importância coadjuvante nos lugares remotos,
Nos passados minutos após a hora marcada...
Marco no relógio para que o ponteiro passasse
E transbordasse instantes imprevistos,
Enquanto tramo texto qualquer - preâmbulo pronto-,
Para, em certo ponto, tremer ao desenlace.

5 de outubro de 2017

Diz que Santa Luzia protege

Não é meu dom de ser sozinho, de me sentir rodeado de vinte e nove subterfúgios sorridentes e um pouco mais de arrependimentos instantâneos que me farão aplaudir a derrocada de trinta e cinco tentativas estúpidas de querer-bem-e-maldizer.
Tenho aprendido bastante a cada olhar lançado ao joelho esculhambado de tanto ir ao chão com a a gravidade que me lançaram com a força motriz de jogar três partidas de indecisões. Já estou velho o suficiente para saber que as coisas andam, como as coisas mudam de lugar, enquanto eu me desloco entre sentir a falta de alguém e tentar alcançar o resto de mim que espalhei nas terras que plantei sementes de felicidade. A tristeza passa, sempre, algum dia; a alegria volta pela manhã quando acordo querendo beijar o meu travesseiro que na última noite foi meu inimigo mais cruel. Eu faço as pazes com lençóis encharcados de suor e sonhos bonitos que acalentaram o espaço vazio que separa, de mim, o resto de tudo. Vou jogando dentro dele pétalas secas do verão que nunca vi ao lado do meu... nada.
Quando à míngua em desertores dias, que ficam incompletos: falta o ar rarefeito que foi prenda, que foi peça pregada em sentido contrário a tudo o que ia numa direção só num dia desses em que o tempo nem era assíduo nem era sumido.
Tantas desculpas para sufocar. Tantas mentiras para sobreviver e depois assassinar numas meias palavras... Era o prenúncio para insinuar e depois se esconder nos vãos do muro que se levantou entre o dia de hoje e o dia em que o mar se abriu e mostrou o penhasco onde uma mão me empurrou e me disse gestualmente: aguenta esta que a culpa é tua. Foi ali embaixo que meu joelho me fez sentir mais uma dor, que me fez lembrar que estava vivo, mesmo todo esculhambado de sangue e um texto abandonado ao critério de alguma arrogância.
Houve uma carta que tarde chegou, nem sei se ela partiu com verdade de lá; algum remetente no mundo há de dizer que havia, mas custa lê-la. Algum escritor há de dizer que escrevia, mas nunca li. Algum viajante há de dizer que o destino está elaborado, um roteiro que passa por rincões de sempre, oportunos, repetitivos, mas nunca fui anfitrião. Algum filme pode entrar em cartaz, mas já estarei cego outra vez.

12 de setembro de 2017

ânodo de sacrifício

a conta-gotas, no dia ímpar,
cinco pingos de zinco.
ora, se é dia par, mais cinco gramas de magnésio.
é ser leto aos poucos,
ou um bocado de tânatos.
para proteger e permanecer vivo: 
polo negativo.
e quando a eletricidade chega deste lado -
positivo, condutivo, maior e decomposto -
polo oposto do outro, atrativo da corrente.
há energia à companhia de íons
no tubo de descarga, e a água salgada
querendo iodar tudo o que for par,
vem corroer e renuncia, ó monovalente?
aquele lado que não precisa galvanizar,
aquela dissociação antiga e clássica
como o mar toma de cloreto de sódio
uns goles que afogam mitos,
uns toques do processo insólito
de que há partido todas as ligas
por que cargas fez-se eletrólito?

27 de agosto de 2017

Tema da Passagem

Dizem do rei caído de seu cavalo, foi o joio?
Noutro tempo, bem ali no sítio da Casa da Quintã,
Foi onde desci daquele progresso em comboio
Para os braços de ontem, às vésperas de amanhã.

N'alguns minutos à tua espera, todo o afã
À entrada de uma estação quase vazia
E, no presente, o meio de uma estirpe alemã
Chegaria a tempo em transporte à primeira vigaria.

Duas mulheres a receber-me com simpatia;
A filha da outra, que uma geração 
No ventre dela quão breve far-se-ia.
Enquanto meu ventre apertava a emoção.

Fui bem-vindo entre a bem-aventurança
Dos filhos da dona com sorriso no rosto,
Filhos do orago a quem a terra, à bonança,
Já traz romântico patrimônio no composto.

Houve, àquela morada cuja carta enviada 
Neste agosto a celebrar tão nobre data,
Visita breve, mas que a carta leve, abreviada,
Novamente a recompor tanta estima nata.

Foi de passagem que estive, e ainda assim
A euforia contive para memorizar o trajeto
E retornar ao lar no dia de hoje, enfim,
A dar-te, no sonho da manhã, todo meu afeto. 

25 de agosto de 2017

Rosa dos ventos que avisou

Eu tinha te falado: o que construímos naquele tempo, naquela casa sem limpeza, naquela rua de um tenente qualquer, na cidade onde se fez bonito tudo que era novo e não iria se repetir se dependesse de uma força que não tínhamos coragem de enfrentar. Era o que deveria ficar como cristal de um palácio todo dele feito, com vista ao rio; à vista, porque, a prazo, vai se esgotando com os deslizes de dia após dia.
Eu tinha pensado nesta dificuldade que teríamos, nesta saudade quebrantada em pedacinhos de memórias, em saudade incrementada pelo dissabor do desuso dos nossos abraços, dos nossos beijos e o afeto que ficariam sempre mais longe possível entre dois pontos e a linha diagonal que não te traria aqui nem me levaria a ti; só rumores, só nós dois de cada lado, e nenhuma data definida para viajar de vez.
Eu tinha chorado uma noite inteira, lembras-te? Foi quando me faltou tudo, onde faltaram mais alguns dias, mais alguns meses que nós temíamos desde aquele outubro recriado na vida de cada um.
Eu tinha escutado um "até logo" ao ouvido, à porta do embarque, à porta da minha saída, quase uma expulsão. Como quem queria acreditar quanto tempo e falta pouco para o logo que nunca soube contar nos dedos das minhas mãos. Haja dedos, haja o que houver, até riscos de lápis num papel: são crescentes e mais parecem afastar do que aproximar.
Eu tinha chegado a casa, recepção tão quente, mas ainda havia em mim o olhar ao que ficou, pois ficou lá, o que uma voz em um "até breve" me amoleceram e requisitaram aquilo que acho mais valioso em mim; deixei antes de entrar naquele avião. Acho que custa tanto perceber que histórias nunca são banais, mas, se dou um espaço e um tempo de mim, e até o mais que tiver ao alcance dos meus sonhos, jamais acreditarei no fim.
Eu tinha ido à escola, ao trabalho, à rua aberta, todo fechado na minha possibilidade perdida na esquina ou na mesa, solidarizar um pouco da grandeza que ainda guardo neste coração invicto até o dia de hoje.
Eu tinha voltado a dizer que sim, eu tinha voltado a dizer que não; eu tinha, depois não tinha mais. É só um trajeto de ida e volta entre querer e precisar e não poder e resmungar.
Eu tinha falado, eu tinha palavras, agora eu não tenho mais nada novo, eu vivo a repetir verbos e adjetivoso, fico procurando sinônimos para dizer a mesma coisa, tentando parecer novidade, todos os dias que são os mesmos, até que descanse quando um bocado de terra estiver sobre mim. É uma marcha fúnebre que cantam lá fora? É o disco arranhado que a agulha que lê e tropeça na linha profunda do risco que se fez em cima da parte onde a canção diz (e repete) o único som?
Eu tinha esquecido: já não temos mais aquilo. Nem sei onde procurar. Estou tentando recomeçar nas palavras que hoje escutei da voz gravada de Carlos Paredes: "Seria necessário voltar a repicar esses discos para poder avaliar bem coisas que talvez nos esclarecessem e nos abrissem novos caminhos." Quando há o finalzinho a dizer sobre os caminhos novos, mais atuais, sobre uma orientação nova.
Eu tinha imaginado: quem precisa orientar-se? Onde se encontra o oriente, o leste distante daqui, onde o sol se levanta, e nasce que, ironicamente, não é aqui do meu lado, senão do teu. Aproveita o sol, primeiro, que depois ele chega cá: nasce para todos, afinal.

24 de agosto de 2017

Coqueiro só


Coqueiro só. Ali, contemplando a beleza do mar de Jatiúca, na cidade de Maceió. Foi hoje, o vento balançava o topo, sua copa; ele partia quase ao meio a paisagem paradisíaca, desabitada naquelas proporções de um por um da fotografia. Ondas mansas, a maré rasa, o céu azul, pincelado com o branco das nuvens repousadas sobre o horizonte. Até onde a vista alcançava. Os corais enegreciam o azul turquesa que se misturava ao verde esmeralda num balé de cores, que o concreto da calçada, passadeira sem passante, completava o visual do fim da manhã.
Coqueiro só. Ali, fazendo sombra para ninguém, fazendo sentido para a areia que recebia todos os raios quentes de um dia soalheiro. Alguma coisa nesta paisagem tinha de fazer sentido. Pelo menos aos olhos que se entremetiam, como pronomial verbo de servir de estorvo para a calmaria toda deste dia desperdiçado à espera de que os olhos recebessem qualquer sinal de conflito: poderia ser a chuva repentina que faz dias caem sobre a capital alagoana ou poderia ser o dilúvio que se espera para terminar diluído em águas mornas os matizes plangentes da alma.
Coqueiro só. Aqui, sem frutos a dar, sem coco para atirar sobre as cabeças de quem por baixo caminha e, acidentalmente, tem uma rajada da natureza: com sol, com coco, com chuva, com qualquer esperança que caia de cima, do céu. Um descrente que nunca espera do acaso motivo para ruptura de paisagens tranquilas.
Coqueiro só. Aqui, só, vai estar. Só aqui também faz sentido, diante deste mar bonito, diante deste azul infinito. Mas o coqueiro continua diante de tudo isso, e só. Imóvel.
Coqueiro só. Não vai longe, não vai a lugar algum. Posa para uma fotografia, no máximo, a fotografia que paralisa o tempo, que corre o mundo, mas o coqueiro segue sozinho esperando que sua sombra dê sentido para algum passante que encontre sob ele o descanso de seus conflitos.
Coqueiro só. Coqueiro que tomei para mim metáfora que, dentro desta beleza quadrada da fotografia, tem mais a dizer de quem o fotografou do que de si mesmo. Às vezes as coisas dizem mais de nós do que delas mesmas. Mas há uma diferença entre o dito - quer na imagem, quer nas letras - e o que realmente se cala. O coqueiro calado que segue só e eu me aproprio a dizer dele e de nós.
Coqueiro só. De hoje. Maceió

22 de agosto de 2017

Assim seja

Olha bem teu último desejo, meu bem:
Que a noite esteja sendo proveitosa
Com a dedicação e empenho que tenho
Em tudo o que eu faço...

Eu não faço questão da noite
Faz dias.
Eu não faço dos dias, viagens e festas.
Eu nunca estive em tuas festas.
Talvez nunca estarei.
Elas não cabem em mim.

Faço da noite uma centelha
De esperança ou coisita mínima
Até por prazer em beber água gelada, a mais fria.
Fumar um cigarro, cuspir o lamaçal
Quando a água gelada se juntou à terra baldia.

Terreno abandonado, sem dono,
Sem alvará de construção.
Sem sombra de dúvidas, o espaço ocioso;
Meu ócio é tua lacuna para o lado vicioso
De quem na terra sob os pés sente e firma verdade,
Senta e se vicia no simples "só não demonstro".

Eu não estarei em tua festa,
Não estarei no fim de semana de páscoa.
Sem dias santos, só infernais.
Dia branco, madrugada adentro
Quaisquer horas são irreais na periferia
Olha no centro do umbigo,
Uma vez mais e apenas te divirtas.

Pois não há plano:
Quando não há prova,
Não tem mais engano,
E tudo se renova
Quando o copo vazio cai, parte,
Os cacos vão ao lixo
Antes que corte a mão de alguém.

Terreno baldio é lugar de ninguém.
Fica, assim, com a lacuna, meu bem
E abriga nela uma nova religião.
Devota-te à santidade - teu zelo? -
Basta, para isso, dizeres amém!

21 de agosto de 2017

Titã


Matosinhos, 12 de dezembro de 2016.

Quase oito hora e trinta minutos, a praia estava escura, o vento frio. Desconfortável e ansioso pelos próximos dez dias em que minha mãe fará uma viagem longa e, quando chegar o dia, celebraremos o 25 de dezembro. Comemoremos somente nós dois, em Barcelona, meu aniversário, na noite de natal. Mas já acho que não haverá comemoração naquele dia; comprarei quatro cervejas e uns frios, apenas. No quarto do hotel, beberei e brindarei meus trinta e cinco anos de vida. É o suficiente.
É com o olhar no relógio que eu jamais imaginaria aos 12 de dezembro que, ainda que não tivesse uma festa ou comemoração especial, eu estarei ao lado da mulher para quem em seu próximo aniversário escreverei uma adaptação de Mário Quintana, ao dizer que ela cuida tão bem do seu jardim para que eu volte; que ainda que me faltem asas, ela transporta flores até mim para que eu possa senti o cheiro bom que só o amor materno restabelece, na sensação única de quem nunca se esquece e revigora um dia como esse, por exemplo.
Pois bem, eu estava numa praia fria e escura, decidindo o próximo passo, a nova chance e a recompensa por dias de amor e terror dos últimos cinco que passamos em Sevilha, Málaga, Granada, Salamanca e Bragança. Em fim de viagem, ontem, percebi o quanto a paisagem que os belos detalhes mouros foram encobertos na Fortaleza Vermelha por um desvio de rota, ao me indicar que o destino seria um armário escuro e insolente, onde ficarei guardado feito roupa para festa de casamento. Como se estar ali e gozar de dias fossem um suspiro de sobrevivência e mais um fim que se anunciava. Ontem, cheguei a casa, desfiz a mala, lavei o corpo e deslavei palavras, pouco minutos depois. Hoje, vim deslavá-las tête-à-tête, porque ontem faltava-me coragem suficiente para encarar o que desbotou numa derradeira oportunidade. Pensava como aquela beleza de Alhambra poderia ter se tornado tão inútil por culpa que eu não tinha. Como fracassado, assumi minha rotina de obedecer regras dos ditadores que, na calada na noite, fazem-nas, quando todos dormem com medo, depois acordam para seguir os caminhos entre armas do Exército e a truculência de um toque de recolher. O rumo que o regime incrementa com tamanha crueldade.
Revivi o Salazarismo na década de 1930, quando nem minha mãe, que chegará em pouco mais de uma semana nem era nascida. A tortura de um Estado Novo que não era meu, mas nascia com nuanças de uma pele que cheira bem e nem condizem com os olhos caídos do autocrata revisitado num passar do tempo, num espaço menor, convenientes cinco dias de autoridade repentina. Eu obedecia porque não valia a pena um conflito daquele longe até da casa que não era minha, que eu aluguei por cinco meses, bem longe do Brasil.
Mas este dia, agora, esta terça-feira de remissão (de segunda a segunda-feira... quantos dias faltam para o fim do mês?) de longa espera por mudança, de quietude na orla, mas turbilhão nas profundezas de uma praia que, por acaso e ironicamente, chama-se Titan (o soberano, em sua etimologia). Mas o rei, até cair - sejam de espadas, ouros ou paus -, normalmente, é absoluto e dá as cartas nos tempos; e aos templos em que constrói sua imagem, semelhança e todo o autoritarismo, parece figurar-se neste mar arredio diante dos meus olhos. Parece ter vindo à orla, neste banco em que estou sentado e redimiu o pecado sob as bênçãos de seus mitos, os que servem apenas para fortalecer suas regras e amedrontar povos.
Era na Praia de Titan que eu deveria ser o burguês Medieval revolunionário e entrar na Titanomaquia de uma Era atrás, havendo assim de decidir no passado tão distante o qual hoje não seria esta insistente batalha que não precisa chegar a dez anos. No passeio da história, o olímpico traz consigo a puja que aquelas águas frias do mar em Titan já teria desfeito, quem sabe, o próximo agosto.

Imagem: Peter Paul Rubens, "Fall of the Titans," oil on panel, Royal Museums of Fine Arts of Belgium (1637-1638)

20 de agosto de 2017

Embrulhado

Hoje, minha querida mãe faz anos. Eu até já escrevi uma mensagem sobre o amor dela dedicado a mim, sobre amor, enfim... Uma mensagem bonita e verdadeira, porque existem coisas que só o amor faz a gente se expressar de uma maneira calorosa, vívida, berrante de alegria. Foi o único amor verdadeiro que senti até agora nesta vida, aquele que é doação completa, não importa o quê, nem onde nem quando... Ela sempre vai estar ali na tentativa de me alcançar, abraçar-me e sentir o quanto minha vida é importante para a dela. Eu, em vez de retribuir de igual maneira, infelizmente, tenho tentado fugir de lugares, isolar-me no meu canto, não ouvir sua voz. Ainda assim - olha só! - ela entende isso e continua me amando do mesmo jeito. No começo do dia dela, eu escrevi aquela mensagem estonteante, palavras breves, mas era o propósito de dizer pouco e dizer tudo. Aqui na cidade já amanhece, eu não dormi, e também ainda não lhe dei um abraço e um beijo grande, porque ela merece isso todos os dias que eu estiver vivo, mas eu não ajo desta forma. Quase sempre estou seco, escondido nos verbos, com gestos atados, e eu acho que isto herdei do meu pai. Não saí todo à mãe, claro.
Sei que precisamos celebrar esta data querida, apesar de minha mãe ser de uma personalidade que tive dela outra herança, é uma mulher de poucas celebrações. Eu vou comemorar com ela e esconder dela quão dura foi a noite que tive, mais uma noite em claro desses dias. As lágrimas que derramo aqui, ela não merece ver. É que tenho uma ferida aberta... e com todo amor de mãe, sei que ela não terá o remédio. Não quero que ela novamente se envolva neste tipo de ferida. Uma vez, ela se envolveu, há oito anos, quando eu quis sumir, ela me ajudou a sair de casa, quem deu a ideia. Quando fui morar em São Paulo, recém-graduado, cheio de sonhos, ávido por novidades e ainda perdido. Contudo, minha mãe precisa ficar longe desta ferida, desta vez. Portanto escondo essas noites de lágrimas e dor dela, como posso. Como não consigo enganá-la, ela sabe que não ando bem esses dias, e sempre pergunta preocupada se vai tudo bem. Tenho que discorrer sobre as coisas boas, sobre alguns planos, e jogar toda a desculpa da parte que lamento na situação política por que passa o País. Neste âmbito, conseguimo-nos, uma vez que minha formação ideológica tem muito do que ela me ensinou, dos valores que passou. No entanto, ainda há outra ferida aberta. Que minha mãe não saiba dela por ora! Uma mãe jamais quer ver o filho chorar, como tenho chorado nos últimos nove dias que antecederam seu aniversário.
Percebo que minha ansiedade não dá para esconder. Não dá para esconder o temor de um futuro para o País, não consigo disfarçar também as frustrações com o trânsito, com o tempo, com o desrespeito na fila para pagar boletos. Não encontro também onde ocultar-lhe o preço do pão, a inflação, as dores dos meninos que dormem na esquina aqui da rua. Não posso fazer este lugar mais bonito, enfeitado com pétalas de rosa para quando ela passe se acendam luzes e toque uma canção de que ela goste. Não é fácil poupar a mulher mais especial deste mundo de ver este mundo com olhos de mãe. Contudo ainda dá para esconder esta ferida aberta, porque felizmente, ela está dentro de mim. Sorte a minha: pele não é embrulho de presente; sorte a minha que embaixo dela está a ferida que minha mãe não pode ver.

19 de agosto de 2017

Edição de Sábado

Quando eu saí às 14 horas e poucos minutos para comprar o coentro, principalmente, pois eu tinha pouco na geladeira, e precisava ressaltar um dos mais saborosos ingredientes da vida, eu fui a passos lentos apreciando aquele caminho já conhecido. Na fila para pagar as pequenas compras, encontrei um antigo companheiro de trabalho que largou também suas pequenas compras para um aperto de mão. Numa breve conversa, nos despedimos cordialmente para seguir no destino do sábado. Então tracei o percurso de volta mais apressado, parecendo que a revolta que eu tinha em mim queria sair, como tem saído aos poucos, e se debruçar na rua; em seguida, esperava que todos os carros também apressados passassem por cima dela e a esmagassem, ali, para sempre, no seu findar. A massa, à espera em casa, estava descansando por quase 1 hora, e eu levava o que faltava para o ingrediente do recheio. Já tinha o guacamole feito, e faltava o frango que já tinha cortado às tiras para cozinhar e virar os deliciosos burritos que planejava para meu almoço tardio. Foi neste sábado que eu quis revisitar a culinária mexicana, desse país que tanto aprecio os sabores. Economizei na pimenta, já que a gastrite anda atacada esses dias. Já na cozinha, cortava os talos e folhas, picadinhos, com a força do pouco que ainda resta da minha fúria, que, às vezes, parece maior, mas é só a intensidade naquele momento.
Tudo pronto, meu almoço solitário às 15h30, em que devorei com ansiedade, dando-me ao luxo de escolher mais um subterfúgio para poupar a cabeça de memórias picadas como coentro e cebolinha no prato quente de uma tarde mais escura que o habitual. Ah, aquele cheiro bom invadia meu prazer; à boca, eu tive pressa de enfiar tudo e engolir. Eu não queria ter almoçado sozinho. Eu já quase desistia de visitar o México e voltaria aos doces caros que tenho pagado com a língua, as lágrimas e o medo. Alguém, por favor, traz uma tequila para desarranjar de vez meu estômago com as borboletas azuis de asas queimadas! Na verdade esse queimor não me faz muito bem, eu sei, mas às vezes quando queima muito, surge a esperança de que as cinzas deem o desfecho para tudo o que foi colorido. Fim do cheiro do coentro, fim do medo... findem lágrimas! Deixa-me a língua para dizer o bendito sábado novamente terá calma para saborear a comida mais lentamente.
Os restos do almoço tardio ficaram para o jantar, devorei mais uma vez a comida, só que fria. Acho que a frieza combinava com a noite, com o resto de comida, com o resto de tudo.
Uma vez li que todo fim é um novo começo. Comecei a ler o livro de poesias que uma velha amiga me emprestou. Parei acho que no oitavo ou nono poema, pois não é que eles pareciam estar falando de mim?! Como aguento me ouvir tanto, incansavelmente, e não consigo ouvir de mim as palavras de outro, no caso, outra: essa que escreve e que há anos acompanho suas letras?! Eu converso comigo mesmo porque não tenho mais suportado aceitar que alguém pode estar mentindo para mim. Eu converso com todos, sim, mas parece que eu não tenho acreditado mais em nada. Enquanto as coisas estão foram de alcance, o irreal é uma fantasia maravilhosa. Só tem um problema nisto tudo: o mesmo que me levou um dia a fazer a faculdade de jornalismo. Não consigo conviver com coisas irreais por muito tempo, eu entro no túnel, invento palavras, investigo qualquer fonte (gestos, silêncios e meias palavras) até eu encontrar e amarrar a história, que pode vir a ser manchete.
Na verdade, tenho uma conversa guardada para os próximos dias. Talvez seja ela o atual motivo da minha ansiedade. Talvez essa conversa nem faça sentido. É vontade de notícia, enfim. Tenho que acreditar em alguma coisa, ainda que seja um buquê de ramos de coentro. Vou comprá-los para me presentear em qualquer outro sábado que precise de mais sabor e menos notícias.

18 de agosto de 2017

Peixe morto

Já faz tempo. Uma semana. Nesta e na outra, o outro foi eu mesmo.
Eu fui quem não sou, pescador, há uma semana.
Rede das linhas imaginárias, traçadas da maneira que a desconfiança pedia.
Parece que foram malhas da rede que tecia sozinho para pescar.
Foi a isca mais caluniosa; foi o peixe que morreu com sede na boca.
Era a sede marinha, a escassez de mar aberto.
O sal desidratou quando fechou ali a rede, enroscada na semana,
E se prenderam os sete dias para, ao oitavo, descansar.

Sabe quantas horas descansei numa semana?
Todas as que estive diante de mim - o outro que fui -;
Eu jamais seria o mesmo por mais que dias descansasse.
Mas há dias que a fome é tão grande
Que coitados os cardumes enfileirados,
Presas infinitas, limitadas a serem peixes e não nadar!

Ficam todos a se debaterem fora d'água
E parecerem nadar e não há água.
São linhas e linhas tecidas,
Armadilha que pescadores há muito mais que uma semana
Fazem o instrumento consumir e arrastar.

A próxima embarcação que saia daqui para as milhas distantes
Transporão o frio entre as escamas arruinantes.
O corpo cravado por espinha entalada garganta adentro,
Afogará qualquer último suspiro
Sem asa, sem perna, sem pata, sem pena
Da guelra desfalecida no peixe a boiar.

6 de agosto de 2017

Triunvirato

A palavra "triunvirato" tem origem na justaposição de dois radicais latinos: "trium", cujo tradução é o numeral três, e "vir", que significa "homem". A associação política firmada por três homens em pé de igualdade remonta a República Romana, em que, por dois períodos, conhecidos como Primeiro e Segundo Triunviratos, designaram uma aliança entre três personalidades para unir forças e governar a supracitada localidade.
Mais tarde, na história mundial, os soviéticos também instituíram o governo de três membros: a Troika. Não sei ao certo se isso evoluiu para o que hoje conhecemos, no Brasil, como os Três Poderes, em nosso exemplo republicano nacional, chefiados pelo Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
Como interessado por política e literatura, decidi adaptar o Triunvirato para tomar as rédeas desses meus dias e instituir meu poder, de modo a conciliar a igualdade entre três homens de mim para que restaurem a força necessária a me governar.
Decreto, assim, que o homem que fui, este que sou e o que pretendo ser se unam a fim de equiparar-se à importância que todos eles têm, agrupem-se e instaurem a Lex Titia nesta vida até agora desgovernada.
Faço isso ao perceber que há algum tempo tenho me queixado de algumas perdas, que se somam aos rastros derramados no solo de desesperança que trilhei à mercê da minha própria sorte e de outros governos que se impõem sobre mim. Em contrapartida, existe em mim uma necessidade grande de ter tudo sob controle, portanto me sinto por muitas vezes transtornado quando algo está fora dos meus radares e dos meus olhos sonolentos. Por ter esta necessidade de controle, abro mão do que não confabula com minhas decisões ou mesmo se contrapõem a elas. Cometo erros constantes em esperar a soma, contabilizando tantos debêntures, que só aumentam minha dívida com meus credores. Como aprendi, não consigo dominar também as economias, e me perco entre estes números deficitários que, com o juro da ilusão, deixaram prejuízos inestimáveis. Peço perdão a terceiros: pagarei quando puder, pois que devo e não nego.
Quando comecei a fazer uma auditoria nas contas, vi que os grifos em vermelho tomavam toda a atenção dos meus olhos; passei horas reparando nos danos, mas não os pude reparar. Foi, então, que me esqueci das conquistas de anos de suor derramado, trabalho árduo de um gestor que andava perdido com intentos que prevalecem na zona do ocaso. Tornei-me, assim, e inclusive, uma persona non grata.
Como eu pude esquecer, entre achados e perdidos, o que fora cativante, o que até agora me chama pela consequência da responsabilidade que congregamos com esses agrados? O homem que fui ressurge, por fim, com a força de uma reparação, eliminando as pontas soltas, conectando os fios de acordos, só comigo e com os meus.
Quanto ao homem que sou, nesta posição de líder ocasional que se revela, desvela o oportuno, incluindo apenas bons e necessários tempos de agora. Condensa a matéria que, no calor desta República, derretia dia a dia, virando líquidos e escoando para galerias que só levam ao destino que por tanto tempo me prenderam equivocadamente a atenção.
Aceitei solidificar o que é matéria de verdade, palpável, quer seja nas mãos, quer na mente, onde dedos e memória têm todo o jeito valerem-se. Quando o homem que serei for aparecendo nas minúcias de todo este trabalho conjunto, vai refletir a esperança que só pode contar com o que os três, juntos, controlam. Quem sabe eles serão o próximo chefe de Estado: sólido. Pois o que era líquido já me escapou faz tempo, e o que é vento nunca vai preencher a barriga deste povo. Deixa-me então povoar e concretizar a nova política, porque até as minhas palavras já não estão tão mais convincentes quanto o poder do suspiro que agora eu me dei conta.

1 de agosto de 2017

Polígono

Fomos dois vértices.
Agora sou linha divisória de vertentes.
Que resta é a forma que dou
À zona de perigo onde estou,
Na minha menor porção possível.

Deste plano que fui, 
Desta face que deste,
Deste lado de cá;
Do tamanho imprevisível,
Que outrora era simétrico.

Dentro daqui, um conteúdo:
Vácuo, graúdo, vazio espaço.
Observo, assim, recuado
O que me foi dito, de bom grado.
O cubo nunca será ao quadrado!
E sujeito do lado é quem ficou.

Uma vertente única,
Ficou unilateral
Ficou aquele calado não
Ficaram confusos os graus.

Euclides me disse
Onde estes dois estarão.
Porque o ouvi falando em grego 
Sobre mútua inclinação.
Fosse "boa glória", dar-me-ia 
Euclidiana teoria à vida.

Somos esta região angular?
Indago, interlocutor, 
Eu faço, do quimérico
E das tripas, coração.
Fazes da minha causa...
Pausa.
Quão me aparas
Quando sou aresta!

Já quanto tempo faz...
E tempo, mesmo, jaz
Naquela interseção.




29 de julho de 2017

Cabo de Guerra (ou Tração à Corda)

Há um toque malvado na noite. Aquela mão pesada que passa sobre a minha cabeça, enquanto estou deitado, com sono, e espero adormecer depois de um dia de trabalho e estudo. É um carinho precioso, porque esta mão traz um apanhado de lembranças e me massageia da testa até o começo do pescoço. Tem sido assim nos últimos quase cinco meses da minha vida. Os dedos macios da memória chegam na hora do meu descanso e acariciam minha cabeça com culpa, ansiedade e o cheiro forte do perfume do tempo. Culpo-me por ter no cheiro do tempo a resistência de me levantar todas as manhãs, ansioso, por atravessar a nado o Atlântico e abraçar o velho mundo dos meus colonizadores. Preciso ficar em Vera Cruz, de Claudias e Cunhas, como o Cordeiro sacrificado, para lutar pelo ar tropicaliente em meio à frente fria de um julho aos pedaços? Eu me faço colono na terra plana que recrio sobre o colchão coberto com a manta xadrez em tons de fogo, em que o laranja sobressai entre formas em vermelho e linhas amarelas. O cobertor que me cobre de outras carícias: as ausentes.
Há quatro noites, minhas artérias decidiram se acalmar subitamente, enquanto eu fugia da minha terra recriada; foi quando, ao chão, eu vim entregar meu corpo ao descanso de fundo do poço, à inconsciência, mas havia uma porta branca: segurou minhas ideias perdidas, à entrada do meu universo de poucos livros e muitos fantasmas. Após isso, meu inimigo de sempre - o sistema imune - decidiu encolher de vergonha; encontrei um pneumococo desabrigado. Ofereci meu pulmão. Foram mais dois dias de dor, além de corpo em chamas e frieza nos pés.
Embora eu quisesse enfiar meus dois pés num balde de água quente, aquecer meus dois pilares - sustento da minha posição de bípede -, que na terça-feira me traíram e me fizeram ir ao chão; foquei nas minhas mãos. Essas, frenéticas por dar e receber notícias, testemunhas da mentira que meus olhos já cansados não mais se enganam.
Meu corpo tem tamanha sinergia moldada à dinâmica das conquistas do passado e do presente, desde à lembrança do meu ancestral que foi ao tronco de um árvore cortada apanhar do meu outro ancestral que o comprou numa feira de homens sem liberdade; meu estômago sinaliza as borboletas azuis que batem suas asas para que eu as cuspa à liberdade que um ancestral meu jamais teve.
Foi assim que descobri uma fauna e uma flora nervosas dentro de mim. Foi assim que me levantei outra vez após sentir a malvadeza do toque, hoje, e vim para trincheira resolver de uma vez esta guerra mundial, esta inquietude de Eras.
Onde estão os aliados? Perderam-se todos em meio à fumaça branca e densa da angústia. Perdidos no latifúndio tão grande que sobra espaço para poucos e falta para muitos, aqueles à beira ou à porta do egoísmo, da ignorância e da ganância.
As plantas rasteiras ornamentam a chegada, onde há palmeiras também a oferecer sombra aos vencedores. Aos perdedores, restam folhas secas do outono passado que o vento sopra de volta à saída. Ao fim e ao cabo, saio da minha terra recriada sempre entre tiros, porradas e bombas, derramando lágrimas sobre as folhas secas, de modo que façam o húmus de uma primavera que nunca mais vi nascer deste lado onde a corda arrebentou.

24 de julho de 2017

Lambida

Destino-menino, bora lá!
Para o que der,
Para o que vier?
Quanto há de crescer, envelhecer?
Deixa-me aqui ficar.

Deixa-me estar assim
Num laissez-faire, laissez-passer,
Quando o deus-dará der,
Quando eu novamente acreditar.

Já não posso esperar vir,
Atolado num eterno porvir
Que jamais alcancei,
Quem não mais vai chegar?

Fica de graça, tão barato, dá onda
No mar-conforto do sorriso
Que esconde no fundo o pranto.
Não posso eu viver deste encanto?

Não há sereias no mar!
Não há peixe para comer depois de afogar.
Formigas sobem pelas minhas pernas cansadas.
Porque o doce, que era doce...
Escorre pela pele a baixo
E faz gotas pesadas nos meus pelos.

Já não quero repetir a receita,
Ingredientes que há muito estão cozendo.
Queimou, amor, no forno quente da história.
Deitei-me sobre o amor e dormi neste frio
Enquanto tua língua continua só lambendo.

16 de julho de 2017

Acordo

Caso encontrasse espaço,
Quando buscasse a sorte
Da forma que partilho a vida
Igual seria a morte
Partilhada na língua que fala
E que diz mais a respeito de tudo.

Contudo recomendaria a trilha
Com nada de passos atrás daria.
À frente da minha agonia:
Um traço do meu esboço.

Quão grande tenha sido a lacuna
Vacina para esses dias,
Um lugar de qualquer um de nós,
Um lugar para todos nós -
Um lugar qualquer, um quase-lugar.

Andar sem permitir desviar
Olhar perdido que estava;
Daria mais uma volta por cima,
Daria mais um milhão de léguas;
Andaria como quem leva
A sorte sempre por baixo do plano.

Quando eu estiver sem sono,
Quando não me caiba debaixo dos panos
Que eu viva a vida num canto
Em busca dos teus braços;
Quando os olhos cerrados
Encontrem o calor sob o manto
E durma para agir noutro campo.

Do tamanho do meu esforço,
Será sempre depois o talento.
Jogaria no baú o esboço
E viveria o desenho novo
Aquele que dá cabo à moda
E resgata a tradição de busca.

Escuta! Percebe! Responde!
Eu hei de esperar mais uns anos?
Eu já acumulo planos.
Eu já sinto um sono.
Prefiro fazer um acordo:
Faço tudo como proposto,
Enquanto ainda estou acordado.

5 de julho de 2017

Amanhã-passageiro

Tenho uma coleções de papéis num envelope plástico.
São memórias de quem já dedicou a mim algumas palavras.
De vez em quando volto a elas.
Releio para não esquecer com o passar do tempo tudo aquilo.
Como em outras vezes, papéis me deixaram lágrimas de um tempo bom que não volta.
As lembranças têm este poder: tentativa fracassada de viajar;
Na verdade, a viagem fica presa dentro de mim.
O veículo que locomove no tempo sem sair do lugar;
Combustível  que vaza lento e doloroso
Engrenagem que se move incansavelmente;
Movimento não acelera nem para frente nem para trás.
O movimento em si.
Eu não sou condutor.
Eu não sou veículo.
Eu não sou trajeto.
Eu não sou...
Fiquei ali mesmo no que fui, esta viagem parada ali.
Ali é o lugar que não alcanço.
Meus braços não se deixam mais enganar.
Pedem descanso.
Assim como a cabeça precisa descansar.
Não há mais surpresas nem na pele nem por baixo da pele.
Não há meio do caminho, interrupção.
Há em mim uma estação de serviços às palavras.
Porque neste ir e vir só quem transitou foram elas.
O combustível acabou, a última gota acabou de cair.
A máquina finalmente para.
Dorme, agora!
Amanhã será ontem.
Hoje passa...
Amanhã quem sabe serei passageiro.

4 de junho de 2017

Ipsis litteris

Estive pensando sobre marcos referenciais para uma vida aficionada em grandes êxitos; a dependência deles gera projetos que, por sua vez, direcionam-me às metas. Mas como lidar com a falta de prazos, libertar-me da expectativa ansiosa e o desespero de mais uma frustração?
Eliminar tais projetos implicariam numa desistência sem medida e, quando o tempo passasse, à frequência esquecida, eu me daria conta em considerações finais e enxergaria a profundidade, na qual metido, além de me distanciar da insistência patenteada há trinta e cinco anos, não me restariam forças para elencar minhas referências, em alguns capítulos.
Acontece que a vida foge à normatização científica. O todo maior que a soma das partes é bagunçado igual à licença poética de um texto livre das amarras gramaticais, editoriais etc. Para ilustrar a falta de protocolo para escrever minha própria história, aproximando-me da literatura e da engenharia da minha necessidade, abandonei o foco nos marcos referenciais, quer por etapas, quer por eventos, para bendizer meus valores em cada página deste livro não linear.
A culinária me traz o prazer de cortar aos bocadinhos, cozer e temperar. Esperar sentir o cheiro de cada erva, e acreditar no bom sabor. Arrumar o prato mais bonito e apresentá-lo aos olhos para que a boca tenha inveja do sentido e execute seu ato de degustar.
A minha sobrinha, amor consanguíneo contado em dois pares de anos e mais um pouco: quem me dá a razão em participar da semeadura geracional de uma novidade, com a prospecção da mais nobre colheita, de cuja participação talvez nem seja mais uma atividade minha.
A minha mãe devota da jornada socorrista; fundamento de tantas das minhas ideias e orientadora fiel sem retorno programado na sua espera. Como uma mulher que espera resultados, não a ela, mas a mim como único investimento. Gestora da arte de criar da melhor maneira, deixa-me hipótese a meu critério.
Meu pai que se ausenta pelo desprezo às teorias, mas, na prática, aparece timidamente para sob a fé do genitor. Não sei se por obrigação que pensa ter, mas é o no carinho diferentemente expressado que entendo o porquê de tanta diversidade no mundo.
Minha irmã, ao evitar problema em texto, contribui na paginação. Presente em todo manuseio. Não esquece uma página sequer, e cada qual forma o contexto.
Família é um capítulo único, pois nele se apresentam e se encerram ali a tese e antítese. São, num miolo de folhas, a síntese dos muitos lados da questão.
Já teve a dança, por gostar, mesmo, de dançar, por passar horas a fio requebrando todo o corpo e expressando o cerne da agonia; quebrar a monotonia de um só ritmo. Eram vários. Eu juro que não sei dizer porque não gosto mais de dançar...
Vieste tu, o meu português vernáculo. Aprimorei minhas habilidades na língua, resgatei-me à herança de uma invasão passada que tirou daqui o tupi e introduziu o novo idioma; o primeiro que aprendi, o primeiro que aprendi a amar, também. A facilidade desta comunicação. Fluência perfeita. A única perfeição. Deu-me regras gramaticais às quais me dediquei para fluir numa das melhores coisas que gosto de fazer: escrever. Ah, se não fosse a minha língua, a nossa língua, talvez eu nem conseguisse expressar um parágrafo do que é vivência. Talvez eu me bastasse por silenciar. Mas prefiro escrever, porque dizer é o que tenho, hoje, como conectivo de sobrevivência.

23 de maio de 2017

Oração da Serenidade (versão pagã)

Dessas lágrimas que hoje derramei
Ao lembrar-me do teu esquecimento
Por um momento,
Um lapso de rei,
Ficam algumas gotas de tópicos a lembrar,
Neste castelo sombrio:
Há vida depois ti;
A vida depois de ti é fim fragmentado;
Fragmentos do coração que do corpo separou-se
Ficaram aí sobre o lençol laranja;
Ficou vazio de sentido;
E, de dolorido, fiquei mudo;
Só falo de ti em todos os dias pós-nós;
A voz pereceu à ressaca em Vera Cruz;
Um vinho tinto derramado na toalha branca;
Um brinde de água e nada mais;
Aridez, por fim, em mim, pôs-se.
Sol de cada manhã, traduzo e adapto
Uma velha sentença estadunidense,
Americana como eu,
Cristã como não mais sou,
Ainda que sereno como a oração:
Mar Salgado, dá-me a serenidade para aceitar
A distância que não posso mudar;
Coragem para mudar a pangeia se eu puder;
E sabedoria para entender a separação

7 de abril de 2017

Mandado de segurança

Caso precise de uma saída de emergência, onde estarão as portas batidas?
Portas a serviço de não entrar, a mando de quem?
Mas se houver portas de entrada, que sejam saídas para quem está de fora, inseguro;
Que entreaberta estejam sempre para quem mudar referência - em estar onde não se queira ficar; quem queira mandar.

2 de abril de 2017

Gastrite nervosa

Eu pensei que iria voltar.
A dor iria passar.
Eu pensei demais.
Agora a dor passou.
E não vieste.
Nada como o pantoprazol
Para resolver nosso caso.

19 de fevereiro de 2017

Sangue latino

Há manchas de sangue nas paredes do meu quarto. Escorrem sob 8 graus Celcius o sangue quente de um ser humano. Aliás, dois. Digo, um. Desde que fomos um. Há o nosso sangue a escorrer até o chão do quarto. Para que, no solo da minha existência de alguns meses, eu sinta esta pista de dança escorregadia quando te chamei para nosso último baile. Aqui dançamos, pois que latinos, o sangue efervescente deste amor que as paredes inóspitas testemunharam vida. Viver, meu amor, não é deixar essas marcas, pegadas feitas de sangue, nem essas manchas de sangue. Viver é ser sangue, é ser quente, é sentir este calor mesmo em condições que queiram dizer o contrário. Como um desafio, que cospe em nossa cara que nunca viveremos o amor. Não te importes - já não me importo - com a opinião dos que não vivem, que estão a discordar de mim, de ti, de todos. Somos discordantes, também, somos iguais na fervura do sangue, pelo amor. Ainda que continuem a dizer que não.
A partir de hoje, este quarto não é mais meu, e quem virá ocupar? Não tenho ideia. Mas que derramem sangue como, juntos, derramamos, aqui neste lugar.

27 de janeiro de 2017

Lei da Demarcação


De antemão, aviso:
As águas do Sousa serão testemunhas,
Espelho dos olhos.
Não te molhes antes que eu fale.
Antes que eu falhe, não te culpes.
Antes da diagonal, não morramos.
Quando eu morrer pela sétima vez,
Acredita em mim:
A oitava vida será, por duas, dividida;
Como o infinito oito, serei quatro,
Tais quais arcos de volta perfeita
A encobrir água de alma feita
Das lágrimas que lá retrato.
Brinda o quarto dia.
Bebe um gole daquele primeiro...
Esquece dias do meio, enfim.
Pois há tempo para beber tanto,
Para sonhar - quem sonharia?
Porque em mim, marco recanto
E desmarco, por lei, algum fim.

20 de janeiro de 2017

Rocha no tempo

Não sei quantas vezes serão necessárias repetições de um nome na tentativa desesperada de fixá-lo na vida, como se a memória suprisse toda existência de um ser em outro. Mesmo assim eu repito. É como um plano literário de fazer viver tal signo vitalício, uma súplica derradeira de cravar tal qual arte rupestre nesta rocha enorme que entendo por mim. Endureci-me para suportar as intempéries das Eras da minha oscilação de espaço-tempo e, quem sabe, encontrar-me em mim, tal força petrificada contra as águas e ventos que jorram e sopram dúvidas de como e onde vou parar assim... Eu, que não vario mais que duas constantes permanências de vida: em mim e para mim, os vestígios de existência.
Em mim, onde vive a ternura adentro, na camada mais profunda e mole à espera de solidificar minha passagem discreta e assumidamente tímida que os antropólogos um dia reconhecerão como firmeza de um ancestral.
Para mim, os templos a proteger e a reverenciar em cultos sem ousar ser deus ou tão homem, já que distante e dura a rocha se firma como matéria sem dor, fria por absorver o tempo e esquecida por procurar imaterialidades. 
Assim, quero deixar de mim apenas alguns símbolos de que passei por aqui, por ali sem saber com precisão onde tudo acaba para começar outra vez a brotar da semente um ramo de felicidade. 
Se for de querer, encho-me de ornamentos, desses que enfeitam rochas frias e cinzas, ou em qualquer outra cor sem importância, para distrair os olhos até que, em paz, o magma mais quente da ternura possa ter o seu tempo de endurecer e fazer de tudo uma coisa só, uma matéria só, sem divisões em cor, estado ou textura... sabe-se lá mais o quê! 
Se um dia descobrirem que esta rocha tem na superficialidade a arte de se arranhar a todo instante, sob o tempo, quer chova, quer seque de calor temporal, quero que continuem imaginando que ela é apenas o papel em branco onde homens só lhe tinham para escrever seus rastros de caminho, de orientação ou apenas de manifestação de algum sentimento, mas que ela continue insignificante em composição, em utilidade modificadora de população e, então, permaneça como coadjuvante peça na história de um povo. Eu não faço questão. Eu já fiz. Eu não preciso mais de um motivo para sentir-me o elenco dessa coisa toda. Hoje, meu tempo é outro. Meu nome é o mesmo. Eu vou continuar a repetir desesperadamente a variação do andros, pois que ele absoluto é toda a humanidade que tenho hoje a guardar naquela camada mais profunda que ainda continuo à espera da solidificação. Por enquanto ela está quente, mole e inquieta. É a parte de mim que aquece mais por existir vida, cor e calor. E o mais impressionante de tudo: esta parte não é só eu.