20 de agosto de 2019

Grinalda de Cana-de-Açúcar


Não sou genuinamente vilã, como pensam, senão uma pária dentro do latifúndio. Soube-me então esta digressão, minha rota do lado de fora, embora as rédeas do caminho se atêm ao interior, sempre quis meu império íntimo, no mínimo. Manipulei o próprio sangue nos olhos e, dele, fiz o arranque. Quando foi o sangue menos denso e dissipado, entretanto, coube-me a primigênia dos Zero, que se fundiu do pai – José Zero – um lavrador orgulhoso, cujas mãos calejadas nos alimentaram precariamente, pelo corte da safra gramínea, com a mãe, Dulcineia Zero, que sempre arou os poucos metros onde nos enfiávamos, sendo apenas genitora, esposa e devota a todos. 
Depois de mim, veio a Dandara. Depois dela, foi-se todo o útero de minha mãe, entregue a Iemanjá, pelas dançantes taieiras nas terras sem encruzilhadas, onde balançam canas-de-açúcar ao vento alísio. Ah, esse sopro úmido escondendo as lágrimas de nossas perdas diárias que se confundem com o orvalho das manhãs de São Miguel dos Campos! Às noites, eu ia e vinha de Maceió, para que eu pudesse me tornar bióloga.
Um dia, diminuíram os cortes de cana, a renda parca ficou ainda mais escassa; os cortes nas verbas da universidade, em contrapartida, cresceram. Eu só tinha uma opção. Então um vendaval forte e sinuoso me fez voar para a Europa Meridional, para iniciar meu doutorado numa instituição portuguesa. 
Houvesse música para esta etapa da vida, seria um canto védico, ainda que eu seja uma latina soprada ao Velho Mundo: “Esta planta brotou do mel; com mel a arrancamos; nasceu a doçura (...) Eu te enlaço com uma grinalda de cana-de-açúcar, para que me não sejas esquiva, para que te enamores de mim, para que não me sejas infiel." Rompi o esteio miguelense, conforme o sopro eventual de alguns anos e dois graus conferidos. Aportei no Porto, bem diferente da minha vila. Não havia deuses nos quais me escorar; era um bocado de semideuses ostentando um currículo impecável para me formar doutora, não bastasse ser a única alfabetizada de uma família campesina. 
Numa noite de festejos nas Galerias de Paris, ruas boêmias da Baixa do Porto, um moço astuto, grosseiramente destituído de finura, que, ao me encontrar, numa celebração de conquistas, desdobramentos de outros descobrimentos mais legítimos, disse-me:
– És a mais linda meio preta dentre as estrangeiras! – com toda liberdade de uma vileza sem punição, solta como gabo inocente, mas tão incômodo quanto àquele sorriso que encantava.
– Olha, sou toda preta. Cem por cento. Mais do que esta noite com as luzes oponentes. – sentenciei minha verdade com brio de consciência. 
– Não me leves a mal, há piores... Digo eu, estou impressionado com tanta beleza em um tom mais escuro com o qual normalmente me impressiono. – continuou a me insultar com tudo o que lhe faltava de galhardia.
– Qual o motivo de não gostar da nuança de minha pele e achar que está impune ao me insultar por seu desgosto? – perguntei para que, no mínimo, tivesse consciência de um crime. 
– Não estou a dizer que não gosto. Estou a dizer que me impressiono justamente porque, à partida, eu, ao que me conheço, nunca fui tão surpreendido por tanta beleza. – ele mudou o tom e parecia querer se redimir da abordagem estúpida.
– Não há vingança em que me apoie que vá abaixo dessas palavras. Bom divertimento! – finalizei sem querer desculpas ou perceber aquele sorriso como redentor de todos os pecados da colonização.
– Peço desculpa. Eu sou o Marcos. Não te deixarei ir sem saber o teu nome. – insistia numa conversa que já começou com imprudência.
– Tudo bem, Marcos... Boa noite! - catei seu nome para jogar no próximo lixeiro à frente.
– E não me vais dizer o teu? – uma licença para formalidade após o desastre que só lhe salvou o sorriso.
 Foi o primeiro choque cultural. Ele riu. O sorriso me deu ódio, paixão e a necessidade de desconstruir muitas coisas que há séculos já nos condenavam. Foi quando já vinha com um copo de vinho na mão e mais um pedido de desculpa.
– Meu nome é Dulce, antes e depois da preta que você achou melhor do que outras. – minha paz naquele instante engoliu numa só dose o armistício. 
– Espera lá! Isso não é cachaça! Não é assim que se bebe... – Marcos me advertia a moderação.
– Não bebo cachaça. Este foi o gole para afogar o que restava solto na trincheira. – como me importasse com as guerras, como visse o sangue na cor de um copo transparente, concluí o primeiro de muitos copos. – Agora você vai cumprir nosso acordo de paz! – então saímos em busca de cachaça.
Ficamos a noite inteira no intercâmbio diplomático. Marcos bebia caipirinha; eu, vinho do Porto. A todo instante ele se desculpava pela péssima maneira de querer me elogiar. Segundo ele, era um elogio. Eu, entretanto, já tinha vencido outras batalhas; ele se apoiava no bairrismo de pertencer à cidade invicta. Criamos ali o escambo alcoolista. Por este encontro inusitado, infeliz no começo, levou-nos, ao final, sem muito me lembrar de como chegamos até meu apartamento, talvez mais alegres, pacíficos. 
Quando a claridade invadia como um inimigo declarado de guerra entre povos, o sol na cara e a vontade de beber água, a mais gelada que houvesse. Tinha dormido com um inimigo? Ou acordado com dois. Contudo não me senti sitiada. O oceano muito escondia a minha vergonha; a terra firme de outrem me dava segurança de um assédio convertido à cumplicidade. Introduziu-me o prazer de novos deuses, libertou-me dos meus demasiados pudores femininos. A partir de então, noites e noites em que Marcos me bebia enquanto devotávamos risos pagãos... Poucos meses me fizeram ser a diáspora nagô, caeté, ameríndia, qualquer mitologia. Um passeio à nau sobre águas turbulentas que um racista capitaneava ao dispor de seu sorriso conquistador, pelo mundo afora em toda Península Ibérica. Poderia ser o inimigo declarado, mas se fez companheiro.
Foi um naufrágio que nos levou ao fundo do mar, o mundo me levou com mais um sopro irônico da vida. Os ventos da insistência me fizeram brisa marítima, levando-me das águas para o continente, outro: o meu, mais ao Norte, como um vento contra-alísio, do Oeste. A convite do meu orientador, entrei em mais um movimento brusco. Quase em linha reta, atravessei o Atlântico para estudar sacarose com outro viés. Deixei um lugar, um acidente de percurso pela farsa teórica das raças. O prazer de um só povo e o prazer de um só corpo... Separaram-me novamente com o golpe frouxo do destino. 
Havia por toda Europa e, agora, os Estados Unidos da América uma ameaça. Sacarose em excesso, era a suspeita. Sacarose sempre foi o meu Norte, desde lá no Sul. Tudo que estudei, o quê nasceu praticamente comigo, como eu também fosse feita grão duro de açúcar, um dissacarídeo composto – uma molécula de glicose e uma de frutose. Uma preta mascava, úmida, solúvel, escura, distante desses cristais brancos pelas etapas de refinamento. Finos e impuros. Não menos doces, fusões.
Dra. Gupta, a endocrinologista chefe da equipe, já me dava a credencial assim que desembarquei em Massachusetts. Primeiro, vinha ZERO, em caixa alta; após a vírgula, Dulce, meu nome de registro; abaixo um código de barras com uma foto três por quatro no canto direito inferior. E do lado esquerdo, uma pequena bandeira, indicando o país de origem. Era meu cartão de ingresso ao laboratório, preso a uma fita azul que punha em volta do pescoço e o crachá que ficava sobre o meu dorso.
Ela me guiou até o meu alojamento. No caminho, a doutora me explicava que “já está descartada a hipótese de um novo tipo de diabetes”.
– Então qual a hipótese, doutora?  
– Um vírus, Srta. Zero! – foi categórica. 
Ao chegar à porta da residência, senti como se as velhas fuligens das queimadas escurecessem todo o brilho que apostava na vida, admitia a opacidade dos meus deslocamentos. 
– Descanse e amanhã teremos tanto para conversar. – despediu-se a morena de olhos grandes, a mulher poderosa, um exemplo para mim. Mas nada, nesta situação, fazia querer ser como ela.
Nem desfiz minhas malas, já deitei no sofá, com a cabeça a mil, o peso de toneladas de pensamentos necessitando do suporte; não havia espaço para sonhos. Uma viagem que confundia todas as minhas batalhas. O vento que vinha da janela me fazia lembrar os movimentos que me levaram aqui e acolá. “Uma menina que saiu de um canavial”, pensava! Agora estava numa trincheira ainda maior, sem vitórias nem derrotas. Pensei o quanto caminhei escorregadia tentando me agarrar em tudo. Por querência; um punhado de sobrevivência; algo de ímpeto; ciência para luzir. Perdi todos os meus deuses em tormentas de um só oceano. Algo perdido desde o início, portanto nunca ganhado. Pelas distâncias em que a vida me sacudia como uma catapulta, nunca estive tão perto de tudo. No máximo, assistia de cima, ou por baixo. Não sabia mais das minhas escolhas e garantias ou da semente germinando no coração daquele tripeiro deixado num Porto de um homem com medo. Tinha sido essa a razão de sua piada de mau gosto, tal qual a forma como foi criado e jamais me levou para conhecer seus familiares, refinados cristais brancos, impuros. 
O meu telefone chama. Somente um nome acende no entardecer do terreiro imperial, em cujo trono estou deitada, esperando uma decisão que me faça valer mais do que todos os mistérios sobrepostos no front de guerra interminável.
– Dulce, estás aí? – a voz que vinha se açucarando parecia um tanto salobra.
– Sim, Marcos, acabei de chegar aqui. Não desfiz sequer as malas... 
– Não me disseste nada ainda. Correu bem a viagem? – como se ele não soubesse que foram dos piores ventos enfrentados.
– Está tudo bem. – uma mentirinha não iria fazer mal antes do banho. – Eu vou tomar banho e já retorno para falar algo...
– É que... – sua voz soava trêmula – Só gostaria de ouvir-te. Até mais.
Não tinha mais forças para falar. Talvez um banho me revigorasse, não fosse a mensagem em seguida ao término daquela chamada: “Não queria deixar-te mais preocupada, mas acordei com formigas por todo o corpo, fui atacado por muitas delas.”.
Tomei o banho que revigora. Vesti a roupa como quem veste carapuça com pressa. Só queria voltar para casa. Precisava de uma trégua. Acho que meu dever já tinha se cumprido. Ninguém tem ideia do que tive que passar para chegar até aqui e não sentir nada. Queria novamente a simplicidade do meu ponto de partida, a segurança para todo o resto de vida longe de novas contendas. Fechei os olhos e me imaginei sentada na pedra em frente à minha casa, esbagaçando roletes de cana com fiapos nos dentes e um sorriso de canto a canto da boca. 
Escrevi numa folha e enderecei ao laboratório aos cuidados da doutora Gupta. Sem mais desculpa. Apenas o anúncio do meu desligamento, uma frase entre aspas, recordando o doutor Joshua Lederberg: “A maior ameaça ao domínio do homem neste planeta é o vírus”.