30 de setembro de 2019

Huambo, 2022.

Estive sentado por duas horas debaixo de uma árvore, no Jardim da Cultura, à sua sombra, ao calor miserável, quase cozinhando, observando as misérias invisíveis da guerra, agora, após a paz. Eu vi ovibundos, filhos bantus de muito tempo. Quase duas décadas e eu não tinha aprendido nada mais do que olhar para o meu umbigo e olhar para fora ou ao redor meio que irresponsável: um observador imprestável sentindo ainda o corte umbilical. Duas horas e um minuto, este tempo, e, finalmente, fizeram todo o sentido - o irmão me dizia amiúde - os efeitos da solitude.

20 de setembro de 2019

Ficou faltando o abraço

De manhã cedo, o despertador em cima da cabeceira da cama soltava um estridente "bom dia". Não tinha cinco minutos de soneca que coubesse na agenda e lhe desse tempo suficiente para terminar aquele sonho maravilhoso das férias em uma das 115 ilhas paradisíacas de Seychelles. Raquel não conseguiu mais uma vez mergulhar no mar. Chegou perto desta vez. A água ainda tocou seus pés, mas o alarme interrompeu o passeio completo. Café em alguns minutos, enquanto tirava a preguiça do corpo embaixo do chuveiro, pronto. A roupa separada em cima da tábua de passar que já fazia parte do mobiliário para o final daquele dia. Veste-se. O gole de café; a mordida no pão dormido. A comida do Nino solta na tigela. O olho no relógio: o ônibus estava a dez minutos da sua parada. Um bochecho rápido pra tirar o gosto amargo da pressa. Corria, subia no coletivo lotado. Chegava ao escritório, uma pilha de papéis para organizar. Olhos atentos, leitura infinita. Acabou. Uma hora de intervalo para esquentar o almoço e dá uma olhada na vida da Maria, do Paulinho, do Tonho e da Silvia - pelo telefone -, enquanto mastigava a sequidão do alimento que já cansou de choque térmico. Comida estrebuchada: da geladeira, do sacolejo do pote na bolsa, depois na geladeira da firma e, finalmente, o aquecimento em razão da radiação eletromagnética de 2.450 MHz. Depois dali, lavar a boca, os dentes, a cara, a coragem, tudo limpo do pescoço pra cima. Retocava o batom. Novamente, a bancada e dois terços dos papéis sem carimbo, sem revisão, passavam pelos olhos atentos em buscas das imperfeições tão indesejadas pelo homem lá de cima, aquele do "bom dia" tão curto que tinha o adjetivo engolido com a velocidade do almoço no refeitório.
Outro sonho permissível nesta parte do dia, era que os ponteiros do relógio rodassem com a velocidade do almoço, do "bom dia" do Sr. Heitor, do banho da manhã e da impaciência do telefone que a todo tempo não parava de tocar. Às vezes, ligação por engano; na maioria, não: eram prazos e cobranças e mais pressa, a mesma desejada para que o relógio marcasse as seis em ponto. Seis em ponto. Dezoito, melhor dizendo. O suspiro que só vinha de vez em quando, na copa, com os goles de água ou café, ou a vontade em última instância de ir ao banheiro para não retardar o compromisso.
Compromisso às dezoito e quarenta e cinco, no mercado da rua transversal, para comprar a ração do Nino e uma porção de coisas que, numa passada de olho dentro do armário, faziam falta. Não deu pra comprar tudo no compromisso de hoje. Duas sacolas nas mãos: melhor para o bolso e para o peso diminuído no caminho entre algumas esquinas, o ônibus de volta para casa.
Raquel sabia que tinha pouco tempo à noite. A louça pedia limpeza. O Nino pedia comida e limpeza porque cagou a casa inteira sentindo falta dela. A roupa para passar, na tábua de passar que era mobília permanente no cantinho da sala. Saltou do ônibus às pressas. Que mulher apressada! Enganou-se e saltou três paradas antes porque a soneca interrompida pelo solavanco do coletivo fê-la acordar com medo de ter passado muito além de casa, mas muito antes de chegar na tão sonhada Seychelles da manhã passada. Não tem mal! Caminho extra pela avenida do bairro, tempo que não via a Silvia desde que ela arrumou esse romance com Matias, e seu dia de folga na semana era a ele dedicado. Mas tinha o balcão do café - abismo do abraço de há muito sentido - separava o hiato dos dias, pois havia o Matias, outros compromissos, uma viagem insolente, de repente, para fazer outro abismo na rotina.

- Raquel! - surpresa danada nos olhos da Silvia e o nome à boca resumia todos os últimos quatro meses em que restaram likes e alguns comentários nos dedos, aos intervalos das duas.

- Silvinha, me faça um café bem quente! - o incidente de três paradas antes fazia valer todo o sorriso e reencontro.

Uma conversa intercalada, com o café quente, pedido de um novo cliente, o abismo do balcão, o bêbado chato a importunar dois acidentes de percurso e o tempo confuso e mais a desculpa que toda a gente simplifica nesses tempos de "vou ver aqui e, qualquer coisa, aviso!" Ainda tinha o Nino com fome e todo tempo que se passe resultaria em mais bagunça pela casa, por ciúmes, por saudade. Todas as pessoas e bichos sentem saudade.


- Silvinha, que tal este fim de semana trazer o Matias aqui? Preciso conhecê-lo, mulher!

- Pois é... Domingo, Sr. Manuel me deu folga, mas o Matias quer me levar para conhecer a tia preferida dele, em Penedo...

- Ah, quanto tempo que não vou a Penedo!

- Tia Amália está muito ruinzinha do fígado, coitada, tive que suplicar essa folga para vê-la.

- Será bom para ela...

- É. Será.


Foi só um beijinho com o balcão no meio das duas e a promessa de "vamos nos ver" e "precisamos colocar os babados em dia", porque Nino já deveria ter feito algazarra por todo o chão. Porque a fome de um gato e mais a saudade fazem coisas irracionais, prejuízos reais. Coitado. Um gato safado, a companhia dela até a hora do fim da novela e o sono chamando. Fim de mais um dia.
Foi só abrir a porta, Nino já foi esfregando o rabão peludo nas pernas, o miado que cobrava atenção. Havia xixi no chão; tinha mijado fora da areiinha.
Primeiro, limpar aquela bagunça de gato. Depois limpar aquela louça da manhã, da noite de ontem e da manhã de ontem e talvez de anteontem. O cheiro de lavanda, deita lavanda pela sala inteira, desinfeta e mete o cheiro de coisa limpa, mas a limpeza pesada, só sábado à tarde, depois do expediente. E o corpo dela, há muito descuidado, ficava para o fim da etapa da limpeza, tirar a pressa do dia, o calor do dia, mas olhava pelo basculhante o céu fechando e parecia que a chuva iria ajudar a refrescar o fim de noite. Ainda bem. Atrasou tudo, a novela já começava, o banho estava demorado para tirar a inhaca de gato fedido que mija a casa toda. E faz ainda uma doce companhia para os dois blocos finais da telenovela após comer toda a tigela de ração novinha, desta vez com sabor de atum. Hummm. Gatinho fedido, safado, deitado no sofá pedindo cafuné na cabeça.
Lá fora a chuva já derramava a água sobre os telhados de fibrocimento. Aquele barulho que tinha que colocar o volume da televisão no cinquenta para poder ouvir melhor. E o sono que era maior? Raquel só precisava de cama, com o tempo fresquinho lá fora, talvez com a ventania, sonhasse com uma escalada na Cordilheira dos Andes. Ela era dessas, que sonha alto.
De manhã cedo, o despertador em cima da cabeceira da cama soltava um estridente "bom dia". Desta vez, não tão claro porque a chuva já durava mais de oito horas. O céu cinzento; chuva grossa, mesmo, parecia que a roupa por cima da tábua de passar teria que, por cima dela, levar aquele casaco guardado com cheiro de naftalina. A bota arranhada, mas a única que tinha. Traje completo. Banho às pressas. A pressa de ontem e também de anteontem. Ração do Nino na tigela, lixo amarrado com toda a caca da noite passada, o gole de café e a mordida no pão dormido. O pote de comida na geladeira, separadinho em sequência dos dias da semana. Hoje é quinta-feira. Uma quinta-feira de um temporal que deixou as ruas tomadas por um rio de água e lama.
"Vai atrasar tudo, ferrou, perdi o busão!", pensou ainda contando três minutos para a condução passar. Quis correr, mas a visibilidade não era boa; a calçada, escorregadia; correu assim mesmo, escorregou. Bateu a cabeça no chão e a condução veio bem em cima dela. Foi o sonho que na noite passada fê-la acordar às três da madrugada, suando num tempo chuvoso.
Foi o descanso do dia. Amanhã, a notícia triste do jornal. A saudade do gato seria por quanto tempo? E a bagunça como seria? E o hiato infinito na vida do gato vestido de fome e saudade; e o abismo que terá no abraço não dado pela Silvia, pela Maria, pelo Paulinho e pelo Tonho. Ainda tinha o Matias, que não a conhecia.

6 de setembro de 2019

Gato sem aperreio

A materialidade se joga à minha frente de uma maneira impressionante, corresponsável e com a permissão que dei, ao suficientemente claro, de falar comigo. Falo de exatidões com a licença poética de uma interpretação pessoal, que só minha sensibilidade - a mais importante - pode me salvar. De olhos fechados, perceber a existência das coisas, ao tato, poupa-me de tempo perdido e me faz ocupar espaço obtido. Não há, aqui, aceitação de garantia dada por terceiros. Quando passa do primeiro, a probabilidade de o ruído ser maior aumenta consideravelmente. Portanto, um agnóstico muitas vezes guarda opiniões para si, e isso não faz dele de todo insensível às coisas, por exemplo, sem forma física. Não recorre à prefixo "meta", nem se apoia em transcendências, tampouco se volta para si para explicar noções. Creio nisso como caminho do equilíbrio. Esse blá-blá-blá tem fundamentos contra o egocentrismo ao passo que refuta também sobrenaturalidades. Existe? Pronto! Quem disse? Conta quem demonstra! E, depois, um ponto para evitar até Terceira Guerra, digamos assim: o ponto da paz.
Quando resumo à coisa, uma incrível palavra que cabe em qualquer entendimento sem precisar de uma definição exata, já estou afastando, ao improviso, a existência daquilo, por sua vez, formatado. Amplificações - sem passar o limite ao encontro de charlatanismos - da necessidade de encaixar coisas, a tal precisão absoluta, tecnicamente invisível, conforme explicou Clarice Lispector, de forma tão bonita, falando da verdade e da perfeição. Então já começo a ficar coisado para aquém e para além de mim, significado mais simples sob quaisquer circunstâncias, sem querer muito aperrear.
Tudo bem, eis aqui um homem aperreado, com a humildade possível de reconhecer aperreios. E já vou avisando que estes não causarão guerras; pontuei a paz linhas atrás. 
No Nordeste brasileiro, o verbo aperrear veio do espanhol, que também foi nosso invasor e deixou esta herança linguística. A origem de aperreado está na palavra perro, que em espanhol significa cachorro. A qualidade do aperreado, assim, literalmente é ser alvo do ataque de cães. Isso porque os ferrenhos espanhóis que aqui desembarcaram atiçavam cães ferozes contra nativos, a fim de assustá-los e fazê-los devorarem vivos os pré-colombianos.
Talvez meu medo de cães venha de uma prática muito antes de eu ter existido e, como se sabe, a genética é poderosa e talvez minha geração saiu passando esses genes de tal maneira que, hoje, sou este homem aperreado em busca de equilíbrio. 
Em contrapartida, desenvolvi uma paixão imensa por gatos, os bichanos divinamente cultuados por uma civilização muito mais antigas que os castelhanos colonizadores da América. Estou falando dos egípcios, que cultuavam os gatos para que pudessem conter a praga dos roedores que ameaçavam a tão próspera agricultura, além de transmitirem doenças.
Diferentemente dos cachorros, que foram domesticados e perderam suas principais características primárias e, como dito antes, foram adestrados inclusive para assustar pessoas, os gatos, apesar de sua vida doméstica, preservam as funções primárias e nunca foram exatamente domados. É um excelente caçador, por instinto. Esse comportamento deu aos felinos uma característica bem peculiar. Atacam apenas sob ameaça ou necessidade de se alimentar. Lembro-me de certa vez meu gato atacar um passarinho que se debatia na varanda. Neste frenesi, representou uma ameaça e foi logo tragado pelas unhas e dentes do meu bicho. O senso de coletividade fez de mim, segundo entendi novamente ao ler um artigo, o porquê de eu ter sido presenteado com aquela caça. Quando coloco seu alimento na tigela é como se eu tivesse repartindo minha caça com ele. Portanto, normal que ele venha dividir a sua comigo. Não existe o ditado egoísta para esta relação: "farinha pouco, meu pirão primeiro". 
A noção de companhia fez de mim ainda mais entusiasta da criação. Companheiro da casa, até hoje tenho um gato de 16 anos (quase 17). Até hoje. Este percurso natural da máquina viva encerra-se no ciclo, quando não da intervenção acidental, seu tempo de vida. O senhor felpudo, ademais de ser um paciente renal, teve diagnosticada metástase pulmonar. O sofrimento tem se arrastado por muitos meses, os sintomas são os mais dolorosos possíveis para mim, avalia para ele. 
Então, na data de hoje, autorizei a eutanásia, de coração partido, porque a saudade de um companheiro de longa data só me traz um aperreio imensurável. Outro aperreio é entender que a dor do outro é maior que a minha. Com a racionalidade que me distingue do instinto selvagem, sem esperar em sobrenaturalidades a postergação de um ciclo que já se encerra, considero na memória textual a expansão do significado de estimação. Um adeus é, talvez, um aperreio do tamanho que se dá à sensibilidade, mas o descanso sempre será o maior dos equilíbrios e, certamente, a tradução mais perfeita da liberdade que o amor nos traz.

2 de setembro de 2019

Fundo do poço

Lá ao fundo estava eu, todo vestido de dor, como quem não quisesse ser esquecido na imensidão. Mas, na verdade, eu não queria, à altura, coisa alguma. Eram muitas cores, coisa bem repartida, não consegui ver direito, mas era aglomerada em nuanças, no mínimo, pareciam dois grandes grupos. Escutei algo, lembro-me de alguns nomes: Joana, Alice, Manuel, Pedro e outros. Também havia o cachorro que andava manco, um passarinho que se debatia com a asa partida nos cantos que nos cercavam, o mendigo cantarolando - sem nome e já esquecido pelo povo -, muita gente, mesmo. Havia um ar seco que fazia pessoas tossirem, o ar que entrava e saía, circulava por ali, às vezes escurecia e parecia uma densa fumaça. Ela se espalhava. Continuei no meu silêncio habitual; abri uma garrafa de água com gás e bebi com toda força da sede e necessidade de borbulhas, sei lá: no estômago, no sangue, nas extremidades do corpo. Um arroto, uma falta de educação, uma reação física muito comum. Talvez um drama de etiqueta fizesse, além da cor da minha roupa e do som do meu corpo, o ruído daquelas caras feias cheias de julgamento. A gente era um monte de descrente, crente, número, indivíduo. Era o serviço de inteligência do mundo e o desserviço por birra, uma grande contradição. Precisava de líder: um sacerdote, um jurista ou presidente? Mas era, como sempre, mais gente metida nesta confusão. Essa cavidade não parava de encher. Luzes, sei lá, flashes, selfies, risos, mensagens instantâneas, fake news... uma mistura de tanta coisa e tanta coisa parecida. Uma cavidade dada por escrutínio.