18 de fevereiro de 2018

Briga de cão e gato

Quando começo a sentir cheiro estranho fuça adentro, do homem rancoroso e amargo que me tornei, igual cachorro desconfiado, de raça de origem duvidosa, arrepiam-me os pelos da alma e expiro a má sorte de novamente farejar estranhezas malditas, como também pretextos que o azar impõe em suas faces brandas. Diz-me logo o equívoco de tua casta! Sou o ouvido imperfeito, embora atento, mas, quanto ao ofato, de longe alcanço o faro canino, porque só me restou, em pé de igualdade, a desconfiança, já que me traiu o apurado cheiro de outros animais. 
Não sou tampouco da família dos canídeos, e, aliás, prefiro felinos, que, embora pérfidos - se há doze anos conheço o meu filhote adotivo, não fujo à expertise de um pai convicto -, são bons exemplos de caça e bote à hora certa. 
Quando tentei domesticar-me nos silos profundos da consciência, ficou um pouco da minha selvageria nas garras aparadas por pequena ética; sim, a etiqueta que minhas senhoras passaram em graus evolutivos até quase agora, próximo ao lobo que em alguns anos me tornarei, faz-se polido mais que o necessário, até; no entanto, ensino bom me vem às pressas da fome, da sede e duma fisiologia medonha, fico pulando nos galhos, entro no dilema de uma briga de cão e gato, porém sempre preciso suprir a necessidade prioritária. Não há aura, embora brisa boa mata dia a dia minha confiança em sortilégios, venho a ser humano em dois minutos de garantia. Espiritualista da casa dos sem-paz, recuso-me a recorrer às fontes de bênçãos enquanto encho minhas mãos com o estoque para o resto do dia. Fome não mais passo, pelo menos por ora; e a sede, ao me encontrar em nervos à flor da pele, tal qual um gato lambendo todo o corpo, sacio, de verdade, a boca seca de sorrisos roubados. Quanto às outras necessidades, costumo dormir algumas horas e esperar o tempo delas.
Desta vez, encontro em estado de ronrono. Aproveita a calmaria da noite e já chegue fazendo um carinho na pelugem, pois aqui até que veio a aragem para encerrar a circunstância. Se eu latir, não me leves a mal, um pouco de esquizofrenia me coube como instinto de defesa, fingimento e própria estima. Preserva também este ambiente de boa vizinhança, porque as cercanias estão tão incrédulas quanto eu e todos os bichos sempre vão entrar no modo de sobrevivência... A que ponto chegamos! Não gosto de especular esta qualidade, ela seria como o sentimento que dizem por aí: alguns de nós pressentem a chegada de desastres naturais. Dá medo só de pensar o caminho até o fim sem arca alguma para que todos nós caibamos de uma só vez, ao menos um par de ímpares. Mas esta história passa por mitos que eu nem vou me alongar; voltaria ao idos da minha última fé e duvido grandemente que saíamos menos ilesos do que a cadeia natural já nos legou. De qualquer forma, ainda bem que acredito na evolução das espécies, pois não é à toa que estive sentado alguns minutos refletindo sobre este dilema todo de ser apenas um animal, qualquer um que seja.
 

15 de fevereiro de 2018

Poeira

Ana Beatriz,

Estava aqui pensando como falar de muitas coisas para ti, uma menininha de apenas cinco anos, a quem, por devoção e único amor sem propósito desta década advém como uma avalanche de razões para que eu siga em frente neste caminho com algumas curvas sinuosas, faz-se de tão pouco, que ainda tenho a contar nos dedos alguns outros motivos, tudo que é motivo para não caber algum mais.
A última vez que chegaste a mim e perguntaste sobre "aquela conversa que só nós dois conversamos", eu tive que te falar que não era mais o momento, e que deixaria para outro dia. Um abraço encerrou o dia em que, quando vais, já não há mais o turbilhão de amor in loco, e volta o "ai", de tanto repetido, deixa-me em dúvida pelo ditongo decrescente, em que eu poderia acrescentar o acento agudo e transformar no hiato que me separaria da dor e me levaria aí, ao teu lugar, este que encontro todas as maneiras, razões menos breves, cada detalhe de um ser e, como se não bastasse, a sinalização do caminho que uma velha amiga chavista continuamente me diz pa'lante y naa'mas. Sou afeito às línguas, já sabes, com minha a feroz e, sempre, entediada serve de busca tua para me pedir treino de novas palavras. Eu simplesmente encho o peito de alegria ao saber que confias em mim e me tens como um mestre das coisas tolas, das brincadeiras cibernéticas e da seriedade que pouco a pouco já estás entendendo.
Esta noite pensei em explicar de uma forma mais lúdica sobre poeira e pedras, para que saibas que  grãos, quando há coalizão, podem ser objeto para que sobre o tempo, ou uma folha de papel, faça o peso, segure, confluam ou divirja, mas, jamais, colida. Posso te ensinar a tacar a pedra longe, ou percebas a força dela sobre o papel e até diferenças. Posso pedir para que guardes, em tua própria necessidade de um dia ter o peso junto às tuas mãos cada vez mais fortes, e te defendas.
Só que, linda menina, eu preciso parar e pensar melhor como explicar na efemeridade da poeira, se solta ao vento, mas que tão reticente ou resistente, possa significar, como um maniqueísmo simplista, ir incrédula ou ficar para soprar aos olhos cruéis uma cegueira repentina. Incomodar é um dom de poucos; acho que é o teu, mas no bom sentido. Incomodar para tirar mais do que um vento pode soprar e acusarem trivialmente o destino, a quem costumam dar conta de resolver toda a situação, dando-lhe apenas a competência sem nos deixar contrapor. Põe-te, aqui, sempre que quiseres contrapor algo, estou a ouvidos ansiosos para escutar tuas razões pequeninas, mas saberás um dia de qual poeira que falo. Sabes, os grãos numa mão aberta cheia de vontade pode fazer milagres desses que em minhas três décadas ainda não vi. E porque fechei a mão, tenho o porquê, querida: ainda não quero te acenar em despedida. Essas mãos fechadas minhas guardam a poeira dos meus dias em cada terra por onde andei, trouxe um pouco de pó do chão, pois sou de terra.
Minha língua sempre há de dizer muitas coisas, sabendo que confias. Vamos, então construir muitas tempestades, vamos causar litometeoro, desconstruir algumas ideias desaguadas, lamacentas, escorregadias, porque, já faz tempo, percebi o quanto és filha da terra, poeira incômoda nos olhos estúpidos de um bocado de ignorantes.

10 de fevereiro de 2018

Caeté

Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É isto, um caeté. Estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente... Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar... O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por acolá, da pensão para o Bacurau, da Semana para a casa de Vitorino, aos domingos pelos arrabaldes: e depois dias extensos de preguiça e tédio passados no quarto, aborrecimentos sem motivo que me atiram para a cama, embrutecido e pesado... Esta inteligência confusa, pronta a receber sem exame o que lhe impingem... a timidez que me obriga a ficar cinco minutos diante de uma senhora, torcendo as mãos com angústia... Explosões súbitas de dor teatral, logo substituídas por indiferença completa... admiração exagerada às coisas brilhantes, ao período sonoro, às miçangas literárias, o que me induz a pendurar no que escrevo adjetivos, que depois risco...
Diferenças também, é claro. Outras raças, outros costumes, quatrocentos anos. Mas no íntimo, um caeté. Um caeté descrente.
Descrente? Engano. Não há mais crédulo que eu. E esta exaltação, quase veneração, com que ouço falar em
artistas que não conheço, filósofos que não sei se existiram!
Ateu! Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo - uma estrela no céu, algumas mulheres na terra...


Texto extraído de: Caetés, Graciliano Ramos

9 de fevereiro de 2018

Cuide de você

Sophie,

Há algum tempo venho querendo lhe escrever e responder ao seu último e-mail. Ao mesmo tempo, me pareceria melhor conversar com você e dizer o que tenho a dizer de viva voz. Mas pelo menos será por escrito.
Como você pôde ver, não tenho estado bem ultimamente. É como se não me reconhecesse na minha própria existência. Uma espécie de angústia terrível, contra a qual não posso fazer grande coisa, senão seguir adiante para tentar superá-la, como sempre fiz. Quando nos conhecemos, você impôs uma condição: não ser a “quarta”. Eu mantive o meu compromisso: há meses deixei de ver as “outras”, não achando obviamente um meio de vê-las, sem fazer de você uma delas.
Achei que isso bastasse; achei que amar você e o seu amor seriam suficientes para que a angústia que me faz sempre querer buscar outros horizontes e me impede de ser tranquilo e, sem dúvida, de ser simplesmente feliz e “generoso”, se aquietasse com o seu contato e na certeza de que o amor que você tem por mim foi o mais benéfico para mim, o mais benéfico que jamais tive, você sabe disso. Achei que a escrita seria um remédio, que meu “desassossego” se dissolveria nela para encontrar você.
Mas não. Estou pior ainda; não tenho condições sequer de lhe explicar o estado em que me encontro. Então, esta semana, comecei a procurar as “outras”. E sei bem o que isso significa para mim e em que tipo de ciclo estou entrando. Jamais menti para você e não é agora que vou começar.
Houve uma outra regra que você impôs no início de nossa história: no dia em que deixássemos de ser amantes, seria inconcebível para você me ver novamente. Você sabe que essa imposição me parece desastrosa, injusta (já que você ainda vê B., R.,…) e compreensível (obviamente…); com isso, jamais poderia me tornar seu amigo.
Mas hoje, você pode avaliar a importância da minha decisão, uma vez que estou disposto a me curvar diante da sua vontade, pois deixar de ver você e de falar com você, de apreender o seu olhar sobre as coisas e os seres e a doçura com a qual você me trata são coisas das quais sentirei uma saudade infinita. Aconteça o que acontecer, saiba que nunca deixarei de amar você da maneira que sempre amei desde que nos conhecemos, e esse amor se estenderá em mim e, tenho certeza, jamais morrerá.
Mas hoje, seria a pior das farsas manter uma situação que você sabe tão bem quanto eu ter se tornado irremediável, mesmo com todo o amor que sentimos um pelo outro. E é justamente esse amor que me obriga a ser honesto com você mais uma vez, como última prova do que houve entre nós e que permanecerá único.
Gostaria que as coisas tivessem tomado um rumo diferente.
Cuide de você.
G

Texto reproduzido de Prenez Soin de Vous (CALLE, Sophie)