Eu adoro quando a imprensa internacional decide repercutir sobre os acontecimentos no Brasil. Não por ser melhor que a nossa, mas por ser mais imparcial do que se tivesse negócios sombrios dentro do mercado brasileiro; aliás, fomento político há tanto tempo. Acho que a piada sobre "burrice" pode ser invertida em tempos líquidos. Continuaremos apenas sambando, só que sob o compasso dos outros, a melodia dos outros, até que sejamos mais nós mesmos, quando reduzidos a nada. Falta quanto?
Adeus, daqui a pouco terra que passou de Vera Cruz para MediaCorporation by US rules e 15 + 45 que nunca digitei numa urna.
Segue a reprodução do texto divulgado ontem no Jornal de Notícias:
De tanto ouvir dizer que Lula da Silva tinha sido condenado sem provas decidir ler a sentença.
A lei brasileira ensombra o julgamento imparcial pois permite que Sérgio Moro seja o juiz na instrução e no julgamento. A falta de distanciamento mostra-se na sentença de Moro, sendo vários os momentos em que se diz "ofendido" com a defesa, ou se refere a "interferências inapropriadas do defensor", denotando ânimo e falta de distanciamento indesejáveis num juiz.
A decisão de Moro suscita várias perplexidades. A mais notável é porque não estão claramente identificados os factos provados. Toda a decisão é uma redonda motivação. Lula desconhece rigorosamente as circunstâncias em que lhe dizem que praticou o crime. É ler para crer.
Outra perplexidade: as notícias da Globo são consideradas matéria probatória. Aliás, dão-se por provados factos noticiados pela Globo - sem qualquer confirmação da sua veracidade, e só porque foram noticiados pela Globo. No ponto 376 diz-se: "Releva destacar que, no ano seguinte à transferência do empreendimento imobiliário para a OAS Empreendimentos, o Jornal O Globo, publicou matéria da jornalista Tatiana Farah, mais especificamente em 10/03/2010, com atualização em 01/11/2011, com o seguinte título "Caso Bancoop: tríplex do casal Lula está atrasado (...)". E no ponto seguinte: "a matéria em questão é bastante relevante do ponto de vista probatório".
Notícias da Globo são convocadas noutros pontos da sentença como determinantes para prova da propriedade do apartamento, sedo-lhes mesmo atribuído o valor de documentos.
Isto não é de somenos, se pensarmos que se trata de um dos jornais mais lidos no Brasil. Ora, Sérgio Moro atribuiu grande peso ao facto de funcionários do prédio, sem nunca justificarem porquê, terem declarado que viam em Lula o proprietário do apartamento. Impor-se-ia ao julgador perguntar se não poderia ser assim em virtude das sucessivas notícias da Globo que repetidamente o afirmaram.
Um outro eixo central da condenação são as mensagens transcritas.
As duas primeiras conversas são de fevereiro de 2014. A primeira decorreu entre Léo Pinheiro e Paulo Gordilho, respetivamente o empreiteiro e o engenheiro da OAS e ambos arguidos:
Paulo Gordilho: "O projeto da cozinha do chefe tá pronto se marcar com a Madame pode ser a hora que quiser".
Léo Pinheiro: "Amanhã as 19h. Vou confirmar. Seria bom tb ver se o de Guarujá está pronto".
Paulo Gordilho: "Guarujá também está pronto".
Léo Pinheiro: "Em princípio amanhã as 19h".
Paulo Gordilho: "Léo. Está confirmado? Vamos sair de onde a que horas?".
Léo Pinheiro: "O Fábio ligou desmarcando. Em princípio será as 14h na segunda. Estou vendo. Pois vou para o Uruguai"
Paulo Gordilho:" Fico no aguardo. Leo Pinheiro: OK" .
A segunda decorreu entre pessoa não identificada e Leo Pinheiro:
- Ok. Vamos começar qdo. Vamos abrir 2 centro de custos: 1.º zeca pagodinho (sítio) 2.º zeca pagodinho (Praia)
-Ok.
- É isto, vamos sim.
- Dr. Léo o Fernando Bittar aprovou junto a dama os projetos tanto de Guarujá como do sítio. Só a cozinha Kitchens completa pediram 149 mil ainda sem negociação. Posso começar na semana que vem. E isto mesmo?
- Manda bala.
- Ok vou mandar.
- Ok. Os centros de custos já lhe passei?
- Conversando com Joilson ele criou 2 centros na investimentos. 1. Sítio 2. Praia. A equipe vem de SSA são pessoas de confiança que fazem reformas na oas. Ficou resolvido eles ficarem no sítio morando. A dama me pediu isto para não ficarem na cidade.
- Ok.
A terceira mensagem é de agosto de 2014, e foi trocada entre o empreiteiro e um executivo da OAS:
Marcos Ramalho: "Dr. Léo. A previsão de pouso será por volta das 9.40, alguma orientação quanto ao horário do compromisso. Obs.: Reinaldo acredita que chegará no local que o Senhor indicado por volta das 10.30".
Leo Pinheiro: "Avisa para a Cláudia (sec) do nosso Amigo para que o encontro passe para as 10.30 no mesmo local".
Marcos Ramalho: "Ok. Leo Pinheiro: Avisou?".
Marcos Ramalho: "Falei com Priscila. Ela tentou transferir no celular de Claudia, mas ela está no banho e ficou de me ligar em 15 minutos. Pelo horário ela já deve está me ligando. Aviso o Senhor assim que falar com ela".
Leo Pinheiro: "É urgente".
Marcos Ramalho: "Dr. Léo. Alterado para 10.30. Falei com Claudia e agora falei o Fábio (filho)".
Marcos Ramalho: "Dr. Léo. Segue o celular de Dr. Fábio. 04111999739606".
Leo Pinheiro:" Avisa para o Dr. Paulo Gordilho".
Marcos Ramalho: "Acabei de avisar Dr. Paulo Gordilho".
Marcos Ramalho: "Dr. Léo, Dra. Lara só pode atender o senhor as 14.30. Deixei confirmado e fiquei de dar OK pra ela assim que falasse com o Senhor".
O teor das mensagens é simplesmente anódino. A segunda delas será a mais comprometedora. Mas Sérgio Moro não explica por que razão conclui que Lula da Silva é "zeca pagodinho", limitando-se a concluir que é assim. De todo o modo, estas mensagens não são suficientes para se concluir que o apartamento foi oferecido a Lula da Silva, que nem sequer intervém em nenhuma daquelas comunicações.
O elemento de prova crucial foi o depoimento de Léo Pinheiro, que aceitou colaborar com a investigação para ter a sua pena reduzida. Fê-lo perante a perspectivava de passar, pelo menos, mais 26 anos preso.
Este arguido foi detido pela primeira vez em novembro de 2014. Em junho de 2016, já em prisão domiciliária, dispôs-se à colaboração premiada. Esta disponibilidade é contemporânea com a sua primeira condenação, por sinal ditada por Moro, em 16 anos e 4 meses de prisão efetiva. A proposta de colaboração foi rejeitada.
Em setembro de 2016, Sérgio Moro ordena a prisão carcerária de Léo Pinheiro, que entretanto também vira a sua pena agravada para nada menos do que 26 anos de prisão. Em abril de 2017 Léo Pinheiro muda de advogados e propõe nova colaboração, desta vez confessando ter oferecido a Lula da Silva o apartamento tríplex. A proposta de colaboração foi, então, aceite.
Atualmente, e ainda sem qualquer acordo de colaboração premiada concluído, a pena de Léo Pinheiro no processo Lula passou de 10 anos a 3 anos de prisão - em regime semi-aberto e grande parte da qual já cumprida. A colaboração trouxe-lhe enorme benefício, sendo a diferença entre passar o resto da sua vida preso ou apenas uma pequena parte. Quando o prémio é desta grandeza será muito tentador contar o que a acusação quer ouvir. O julgador não pode deixar de ter presente esta lei da vida.
Em termos de documentos, a prova queda-se com a cópia carbono de "Proposta de adesão sujeita à aprovação" assinada por D. Marisa em 12/04/2005 relativamente à aquisição do apartamento 174 (o "apartamento tipo"); e com o original daquele documento, que foi rasurado para o numero 141 (correspondente ao tríplex), ambos apreendidos em casa de Lula.
Entre 2009 e 2014 o apartamento foi visitado duas vezes pela família de Lula de Silva, que não acompanhou os trabalhos de remodelação. Não será plausível que as remodelações tenham sido feitas para seduzir o ex-presidente à aquisição do imóvel? Na altura, Lula era uma figura de prestígio mundial, cuja presença garantiria valor não só ao imóvel, mas até a toda a área. Por outro lado, não sendo Lula, em 2014, presidente do Brasil, por que razão haveria o empreiteiro de se sentir obrigado a remodelar-lhe o apartamento?
Tenho para mim que Sérgio Moro levou o conceito de prova indiciária demasiado longe. Nenhuma das provas é suficientemente consistente e conclusiva. Não afirmo a inocência de Lula. Mas entendo que a sua culpa não ficou suficientemente demonstrada para a condenação. E, tal como muitas vezes se repete pelos tribunais, melhor fora um culpado em liberdade do que um inocente preso.
Rita Mota Sousa - magistrada do Ministério Público de Portugal