22 de novembro de 2019

Dinâmica social dos movimentos dos corpos

Há um tantinho assim de insalubridade no olhar que julga, eu sei. Danifica, às vezes, sem nenhuma cautela, sem a responsabilidade com a coordenação entre as palavras ditas - sejam claras como o som da fala, sejam pelo arco que se monta e dispara a flecha retínica. A gente fica com medo do olhar de reprovação; quando não se apavora apenas com uma cobrança advinda do bem ou do mal, digo, por bem-querer preocupado ou apenas pela necessidade de tirar de outro o que não se encontra em um: o si mesmo.
Vai se culpar por morte da bezerra, por tendências veganas, até querer lançar a fome. É muito estômago em vez de mente. É mentira maldita sobre nutrição em todas as suas belas formas. Muito querer tirar o doce, salgado, azedo, qualquer paladar da boca de uma criança ou idoso, ou mesmo de assalto a alguém que consiga se defender. Haja fome no mundo!
E nesses caminhos que passeiam por todo corpo e suas atividades, por último, vão querer levar a alma. Talvez ainda não acreditando na existência dela, coisas que não se tocam, o toque ser mais profundo por meios mais hediondos. O mundo está cheio de ladrões das coisas que se movem e daquelas que param no sentido de contemplar a paz. Desejando sempre dizimar qualquer resquício de uma existência, muitos nem se contentarão quando o repouso silencioso do lugar tranquilo que, por acaso, tenha uma pedra ou uma madeira com o seu nome, até ali vão querer subtrair. Sirva isso para o fogo fazer numa noite fria ou vender no mercado opressor. A gente também lida com pedras e algumas valem mais do que o teto inteiro de tantos que só ficaram com descartáveis papelões.
Quando isso culminar no acúmulo de pedaços de coisas de tantas outras subtrações, a soma de todo o patrimônio talvez cause desconfiança, mas provavelmente pela proporção e a experiência em crimes perfeitos, só restará passar adiante porque o caminho de toda a gente é o mesmo, sem luz, sem túnel, onde acabam todas as coisas. E, portanto, as tentativas de caminhos à brevidade desta situação farão dos atentos a esse movimento um energia molecular, talvez dispondo de uma terceira lei para justificar todas as direções de forças. Quem sabe, assim, se reconheça o estágio que passou pela inércia, ultrapassou o princípio de superposição. E como uma instância terminal, quando não cabem mais seus recursos, impossível tentar unir o que já esteja em sentidos opostos.

14 de novembro de 2019

vitamina póstuma

não me venhas dizer que toda manhã esta inquietude silenciosa aos ouvidos possuídos de muitas histórias contadas faz de mim mais ou menos um homem de poucas ou nenhuma palavra
sabes que encaixotados há um dicionário de aptidões, uma festa com rojões e calos
estive calado de atrito
todo grito engolido com um só gole de derradeira vez e o pouco que resta de quase tudo que se foi são fumaça de muito tempo
vês que há cinzas ou cheiro de
queimado?
há muito que não se liquefazem
pois já se derramou tanto leite fora
pois já se bateram tanto dois - ou mais
não tem mais açúcar, nada doce, não é amor
só um liquidificador quebrado com o copo por transbordar do significado de emudecer
é avaria, então deixa molhar outra vez

10 de novembro de 2019

Turismo de plástico

Há dois anos, estava estampada a manchete, nos principais veículos de comunicação, que Maceió ganhava o “Parquinho Sustentável”. Depois da inauguração do primeiro equipamento, veio outro, outro... Assim, a ideia foi ganhando força com a parceria feita por empresas de alguns setores que fornecem insumos desta prática urgentemente necessária. Talvez haja, atualmente, quatro ou cinco deles na cidade. Os bairros litorâneos ficam mais esquipados e receptivos para turistas. A criançada local também tem opção de lazer com vista ao mar.
Equipamento bonitinho, feito em madeira sustentável, resistente e tratada. Material bom: de eucalipto ou pinus. Tem até placa fotovoltaica, para o usuário, caso necessite, carregar o telefone com eletricidade diretamente produzida pelo sol, fonte de energia limpa. Olha que maravilha!
Em uma das reportagens, um turista de Brasília, que tinha trazido sua filha de quatro anos para brincar no espaço, elogiava a iniciativa:

– “Eu acho bastante importante essa atitude da Prefeitura de poder propiciar essa diversão para a criançada. Espero que esse espaço se mantenha aqui. A gente percebe que são equipamentos novos. Essa iniciativa de trazer as crianças do meio eletrônico é de suma importância. Ter um espaço para gastar energia é uma questão de saúde”.

Depois de um depoimento desses, roga-se à sociedade colaboração; torcer para que se conservem os parquinhos. Criança brincando, com sorriso largo, é uma coisa, mesmo, linda. É memorável a experiência da felicidade também em terras forasteiras. Levar na bagagem uma recordação como esta do Paraíso das Águas pontua a cidade em requisitos de atrativos turísticos.
Como já passei da idade de brincar em parquinho, sendo nativo sem filhos, vi-me sem utilidade neste ambiente, mas apoio a iniciativa como tantos outros cidadãos, com ou sem filhos. Não caibo num daqueles balanços ou escorregadores, então nem me atrevo a usar o espaço, mas em algumas caminhadas na orla, aprecio um presente dado à terrinha.
Num desses dias de sol, caminhei pelo calçadão da praia de Ponta Verde e parei para observar atentamente o parquinho, que estava vazio. Perguntei-me, com inveja por não poder voltar ao tempo e me jogar naqueles brinquedos, se meu momento era mesmo outro. Confirmei, fugindo ao sonho da máquina do tempo. Mas, ora, tinha aquele marzão, até mais lindo que o tal parquinho! Ele me convidava ao banho; caminhei, descalço, ao encontro das águas mornas. O parquinho foi ficando para trás e a areia quente e branquinha da praia era o aperitivo do entretenimento, digamos, mais adulto; aliás, sem restrição de faixa etária. Dois passos à frente: uma sacola plástica, alguns copos descartáveis e embalagens de salgadinhos dançavam ao vento do litoral. Não sei se queriam mergulhar nas águas dégradées de azul, mas torcia para que não.
– Não façam isso, por favor, turistas desagradáveis! – uma voz presa, não estava atrás, como o parquinho, nem à frente, como o mar convidativo. Estava dentro. Gritava a voz que os descartáveis e desagradáveis turistas não podiam ouvir por dois motivos: a voz ficava presa no meu interior; e esses viajantes, do lado de fora, sabe-se lá da procedência, também não conseguiriam ouvir, pois que bailam ao som do uivo do vento. Sem vida, sem precedente, sem nenhum registro; talvez nem constem nas FRNHs (Ficha Nacional de Registro de Hóspedes) documentadas nos hotéis, aqueles mesmos parceiros na construção dos parquinhos sustentáveis.
Talvez aquela extinção de vida tivesse viajado, ou mesmo descido a ladeira Doutor Geraldo Melo dos Santos, se vieram da parte alta. Caso tenham residência por ali, à beira-mar, poderiam ter vindo das barracas da orla ou dos hotéis, aqueles mesmos parceiros na construção dos parquinhos sustentáveis.
Meu dia de folga tinha se tornado já uma aula de sustentabilidade in loco. Na minha bolsa de plástico, estavam filtro solar, uma garrafa de água – em embalagens plásticas –, uma toalha e quiçá duas peças de roupa. Matei a charada, fiz-me refém de uma vida cercada de polietileno e, ao mesmo tempo, tornei-me um criminoso em potencial ao ensejo do descarte inapropriado. Minha consciência não me faria ser ambíguo em duas funções tão antagônicas. Descartaria, certamente, no lixeiro, contudo, após a responsabilidade parcial, que fim teria esses meus objetos, além de deixar de ser parcialmente meus? Seriam novos turistas nas praias, filhos órfãos de uma responsabilidade de consumo, pequenos pesos mortos; quando ressignificados e unidos, terríveis algozes consumidores personificados do turismo de massa. Produtos, sim, mas do conjunto de ações nada sustentáveis. Foi o insight para confluir todas as ideias em torno do marketing ambiental. Acabou-se, pelo menos ali, a praia. Ficou turva, suja, sem sentido. Ficou o resto do dia de folga para descansar, sei lá, da semana de expediente e da folga em conflito.
Outro dia, então: luz do sol nascendo para todos; alimento que sustenta; higiene pessoal – banho de espuma e água fria jorrando numa cabeça quente na manhã que estava apenas começando. Uniformizado tal qual um profissional de turismo, com barba feita, cabelo bem penteado, melhor apresentação pessoal possível. Apressei-me até a parada de ônibus para apanhar a condução. Lá vinha o trabalho, o que escolhi por afinidade, por questões, também, de consumo – Quem nunca? – Posto dado, oportunidade, exercício automático em facetas de ossos do ofício: eu, recepcionista de hotel.
Dia de trabalho, como quase todos da escala seis por um, é cheio de funções. Costumo operar um sistema, ser cortês com hóspedes, passar informações, fazer vendas e estar sempre pronto para a solicitação porvir. Sorriso sempre na cara. Cara velha, cansada, mas sorridente. Tinha um turista que pediu o kit de higiene pessoal (vinha creme dental e escova de dente; no outro pacote, uma bisnaga de espuma para barba e um aparelho de barbear descartável). “Disponha”, era a resposta mais breve e educada quando um cliente agradecia, com a pressa corriqueira, quando se lembrava da palavra “obrigado”. Este, por acaso, lembrou-se. Sem julgamento, espero que faça parte do seu hábito, em todas e quaisquer circunstâncias, ainda que em correria.
Ao lado do meu setor, havia uma loja de conveniência. Era um hotel express; serviços essenciais inclusos na diária comprada, com algumas cortesias da casa, como aqueles kits de higiene pessoal, amenities. Outros serviços, como os produtos da loja de conveniência, eram on demand, preço inserido na fatura, podendo pagar no check-out. A gente importou standards, muita tecnologia gringa, e também veio, com ela, a sua língua.
Na lojinha, como chamamos intimamente, havia salgadinhos, comida congelada, bebidas variadas, guloseimas doces para pegar, pagar e comer quando quiser. Ao lado da máquina de café, tinha uma cortesia do hotel: pratinhos, talheres, canudos e copos descartáveis, tudo de plástico. Ah, não posso me esquecer dos guardanapos de papel! No entanto, acredito, eram quase, à exceção da comida e da bebida, 98% feitos de plástico. Fico embasbacado como a lojinha é rentável; os turistas, às pressas, antes dos passeios, das saídas, ou mesmo quando chegam com muita fome, sempre passam na lojinha para pegar, pagar e comer quando quiser. Foi o que fez a senhora paulista, como consta na sua FRNH.

– Tem o quê aqui? Estou faminta! – já abrindo a porta e esquecendo-me e esquecendo-se da gentileza de ouvir minha resposta. Era a pressa, fome.

Agora me deu um pouco de vontade de julgar, pela educação; aliás, a falta dela, e a insignificância dada à minha pronta resposta que já começou e ali mesmo parou no verbo:

– Tem... – (vácuo habitual).

Era, assim, uma das próximas bailarinas à brisa marinha nas manhãs. Aquela embalagem de plástico que ela apanhou na lojinha, talvez largue na praia, bem em frente ao parquinho sustentável. Pode ser que se largue da vida, que seja a próxima extinção, sendo também de plástico. Ali, junto aos outros viajantes e aos locais – tanto os que descem pela ladeira Doutor Geraldo Melo dos Santos, quanto os que moram nessas transversais e paralelas das vias litorâneas –, ela circula; eles fazem um círculo danoso, até que caiam no mar. E isso se sucederá por dias e dias até que este hotel talvez seja mais um parceiro na construção do próximo parquinho sustentável.