10 de novembro de 2019

Turismo de plástico

Há dois anos, estava estampada a manchete, nos principais veículos de comunicação, que Maceió ganhava o “Parquinho Sustentável”. Depois da inauguração do primeiro equipamento, veio outro, outro... Assim, a ideia foi ganhando força com a parceria feita por empresas de alguns setores que fornecem insumos desta prática urgentemente necessária. Talvez haja, atualmente, quatro ou cinco deles na cidade. Os bairros litorâneos ficam mais esquipados e receptivos para turistas. A criançada local também tem opção de lazer com vista ao mar.
Equipamento bonitinho, feito em madeira sustentável, resistente e tratada. Material bom: de eucalipto ou pinus. Tem até placa fotovoltaica, para o usuário, caso necessite, carregar o telefone com eletricidade diretamente produzida pelo sol, fonte de energia limpa. Olha que maravilha!
Em uma das reportagens, um turista de Brasília, que tinha trazido sua filha de quatro anos para brincar no espaço, elogiava a iniciativa:

– “Eu acho bastante importante essa atitude da Prefeitura de poder propiciar essa diversão para a criançada. Espero que esse espaço se mantenha aqui. A gente percebe que são equipamentos novos. Essa iniciativa de trazer as crianças do meio eletrônico é de suma importância. Ter um espaço para gastar energia é uma questão de saúde”.

Depois de um depoimento desses, roga-se à sociedade colaboração; torcer para que se conservem os parquinhos. Criança brincando, com sorriso largo, é uma coisa, mesmo, linda. É memorável a experiência da felicidade também em terras forasteiras. Levar na bagagem uma recordação como esta do Paraíso das Águas pontua a cidade em requisitos de atrativos turísticos.
Como já passei da idade de brincar em parquinho, sendo nativo sem filhos, vi-me sem utilidade neste ambiente, mas apoio a iniciativa como tantos outros cidadãos, com ou sem filhos. Não caibo num daqueles balanços ou escorregadores, então nem me atrevo a usar o espaço, mas em algumas caminhadas na orla, aprecio um presente dado à terrinha.
Num desses dias de sol, caminhei pelo calçadão da praia de Ponta Verde e parei para observar atentamente o parquinho, que estava vazio. Perguntei-me, com inveja por não poder voltar ao tempo e me jogar naqueles brinquedos, se meu momento era mesmo outro. Confirmei, fugindo ao sonho da máquina do tempo. Mas, ora, tinha aquele marzão, até mais lindo que o tal parquinho! Ele me convidava ao banho; caminhei, descalço, ao encontro das águas mornas. O parquinho foi ficando para trás e a areia quente e branquinha da praia era o aperitivo do entretenimento, digamos, mais adulto; aliás, sem restrição de faixa etária. Dois passos à frente: uma sacola plástica, alguns copos descartáveis e embalagens de salgadinhos dançavam ao vento do litoral. Não sei se queriam mergulhar nas águas dégradées de azul, mas torcia para que não.
– Não façam isso, por favor, turistas desagradáveis! – uma voz presa, não estava atrás, como o parquinho, nem à frente, como o mar convidativo. Estava dentro. Gritava a voz que os descartáveis e desagradáveis turistas não podiam ouvir por dois motivos: a voz ficava presa no meu interior; e esses viajantes, do lado de fora, sabe-se lá da procedência, também não conseguiriam ouvir, pois que bailam ao som do uivo do vento. Sem vida, sem precedente, sem nenhum registro; talvez nem constem nas FRNHs (Ficha Nacional de Registro de Hóspedes) documentadas nos hotéis, aqueles mesmos parceiros na construção dos parquinhos sustentáveis.
Talvez aquela extinção de vida tivesse viajado, ou mesmo descido a ladeira Doutor Geraldo Melo dos Santos, se vieram da parte alta. Caso tenham residência por ali, à beira-mar, poderiam ter vindo das barracas da orla ou dos hotéis, aqueles mesmos parceiros na construção dos parquinhos sustentáveis.
Meu dia de folga tinha se tornado já uma aula de sustentabilidade in loco. Na minha bolsa de plástico, estavam filtro solar, uma garrafa de água – em embalagens plásticas –, uma toalha e quiçá duas peças de roupa. Matei a charada, fiz-me refém de uma vida cercada de polietileno e, ao mesmo tempo, tornei-me um criminoso em potencial ao ensejo do descarte inapropriado. Minha consciência não me faria ser ambíguo em duas funções tão antagônicas. Descartaria, certamente, no lixeiro, contudo, após a responsabilidade parcial, que fim teria esses meus objetos, além de deixar de ser parcialmente meus? Seriam novos turistas nas praias, filhos órfãos de uma responsabilidade de consumo, pequenos pesos mortos; quando ressignificados e unidos, terríveis algozes consumidores personificados do turismo de massa. Produtos, sim, mas do conjunto de ações nada sustentáveis. Foi o insight para confluir todas as ideias em torno do marketing ambiental. Acabou-se, pelo menos ali, a praia. Ficou turva, suja, sem sentido. Ficou o resto do dia de folga para descansar, sei lá, da semana de expediente e da folga em conflito.
Outro dia, então: luz do sol nascendo para todos; alimento que sustenta; higiene pessoal – banho de espuma e água fria jorrando numa cabeça quente na manhã que estava apenas começando. Uniformizado tal qual um profissional de turismo, com barba feita, cabelo bem penteado, melhor apresentação pessoal possível. Apressei-me até a parada de ônibus para apanhar a condução. Lá vinha o trabalho, o que escolhi por afinidade, por questões, também, de consumo – Quem nunca? – Posto dado, oportunidade, exercício automático em facetas de ossos do ofício: eu, recepcionista de hotel.
Dia de trabalho, como quase todos da escala seis por um, é cheio de funções. Costumo operar um sistema, ser cortês com hóspedes, passar informações, fazer vendas e estar sempre pronto para a solicitação porvir. Sorriso sempre na cara. Cara velha, cansada, mas sorridente. Tinha um turista que pediu o kit de higiene pessoal (vinha creme dental e escova de dente; no outro pacote, uma bisnaga de espuma para barba e um aparelho de barbear descartável). “Disponha”, era a resposta mais breve e educada quando um cliente agradecia, com a pressa corriqueira, quando se lembrava da palavra “obrigado”. Este, por acaso, lembrou-se. Sem julgamento, espero que faça parte do seu hábito, em todas e quaisquer circunstâncias, ainda que em correria.
Ao lado do meu setor, havia uma loja de conveniência. Era um hotel express; serviços essenciais inclusos na diária comprada, com algumas cortesias da casa, como aqueles kits de higiene pessoal, amenities. Outros serviços, como os produtos da loja de conveniência, eram on demand, preço inserido na fatura, podendo pagar no check-out. A gente importou standards, muita tecnologia gringa, e também veio, com ela, a sua língua.
Na lojinha, como chamamos intimamente, havia salgadinhos, comida congelada, bebidas variadas, guloseimas doces para pegar, pagar e comer quando quiser. Ao lado da máquina de café, tinha uma cortesia do hotel: pratinhos, talheres, canudos e copos descartáveis, tudo de plástico. Ah, não posso me esquecer dos guardanapos de papel! No entanto, acredito, eram quase, à exceção da comida e da bebida, 98% feitos de plástico. Fico embasbacado como a lojinha é rentável; os turistas, às pressas, antes dos passeios, das saídas, ou mesmo quando chegam com muita fome, sempre passam na lojinha para pegar, pagar e comer quando quiser. Foi o que fez a senhora paulista, como consta na sua FRNH.

– Tem o quê aqui? Estou faminta! – já abrindo a porta e esquecendo-me e esquecendo-se da gentileza de ouvir minha resposta. Era a pressa, fome.

Agora me deu um pouco de vontade de julgar, pela educação; aliás, a falta dela, e a insignificância dada à minha pronta resposta que já começou e ali mesmo parou no verbo:

– Tem... – (vácuo habitual).

Era, assim, uma das próximas bailarinas à brisa marinha nas manhãs. Aquela embalagem de plástico que ela apanhou na lojinha, talvez largue na praia, bem em frente ao parquinho sustentável. Pode ser que se largue da vida, que seja a próxima extinção, sendo também de plástico. Ali, junto aos outros viajantes e aos locais – tanto os que descem pela ladeira Doutor Geraldo Melo dos Santos, quanto os que moram nessas transversais e paralelas das vias litorâneas –, ela circula; eles fazem um círculo danoso, até que caiam no mar. E isso se sucederá por dias e dias até que este hotel talvez seja mais um parceiro na construção do próximo parquinho sustentável.

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