3 de março de 2011

O começo dos meus 'Queer Studies'


(…) mas há um investimento em transformar a expressão do olhar, tornando-o menos objetivo, mais confuso e perdido, mais delicado, quase inocente e indefeso.” Clarice Lispector


O termo eonismo é específica referência ao travestismo masculino. Travestir-se é adotar referências físicas e hábitos comuns ao do sexo oposto. Questões de gêneros sempre estão em evidência nas diversas plataformas da comunicação, seja pelo âmbito social – são vários os fatores, destacando-se a cidadania para evidenciá-los -, seja pelo contundência temática de sua estética que sempre requer um olhar diferenciado para algo que, por tantos, é visto como doença, anomalia ou qualquer outro substantivo pejorativo. O olhar do cineasta paraibano André da Costa Pinto foi no alvo certo da diferença supracitada, ao documentar a realidade de duas personagens reais que poderiam constar como mais uma dupla da vertente humorística ou penosa que a dramaturgia cinematográfica costumeiramente reproduz. Temas subversivos como o travestismo já ocuparam um longo rol nas produções audiovisuais por extensa data. Pode-se citar Andy Warhol, com seu Mário Banana, ou a produção australiana Priscilla - A Rainha do Deserto, cujo sucesso foi explosivo na década de 1990. As drag queens parecem ser ingrediente para polêmica e sucesso quando se queira levar à tona na ficção pessoas que, por qualquer de seus motivos, vistam-se da forma permissível tranquilamente ao sexo oposto. Tirando de cena a discussão do fetichismo, da necessidade eventual de uma mudança de padrão ou qualquer outro quebra banal da hegemonia, trataei aqui de um documentário curta-metragem que traz o relato da vida de dois travestis nordestinos que optaram pelo travestismo como identidade para o cotidiano, e cada qual com sua maneira de viver e sobreviver com essa relação de mudança de paradigma, para viver.

Artur Maculino Gomes e Hernando Porfírio da Silva

Barra de São Miguel, cidade de aproximadamente 6 mil habitantes, no Cariri paraibano, dois homens não satisfeitos com a condição natal do sexo masculino, resolvem mudar, exteriormente, a forma como se apresentam ao mundo, por se julgarem com mente feminina, depois de conhecerem sua natureza tão íntima, numa convivência de 24h diárias. Artur, hoje se chama Amanda, professor de história na rede pública de sua cidade. Hernando, prostitui-se na cidade de Santa Cruz do Capibaribe – PE, sob a nova identidade de Monick. Histórias que se assemelham quanto à descoberta de uma anormalidade social, em uma cidade tão pequena onde nasceram, mas que toma rumos diferentes na condição social da mentalidade globalizada, quase sempre obrigando todos a se apresentarem por suas respectivas profissões. O documentário apresenta fatos da vida de cada uma das personagens que são inusitadas até para cidades mais cosmopolitas, perpetuando valores como família, religião, respeito, convivência harmoniosa, tão natural para seres humanos em condições, digamos, mais normativas. No caminho onde se cruzam duas histórias é possível enxergar suas separações. Realmente, nenhuma pessoa no mundo é parecida, mesmo quando se trata de dois casos estereotipados como os das travestis paraibanas. Amanda pode ser conhecida como uma pessoa que tem o apoio familiar, já que seu pai a acompanha e nos minutos finais do filme, ele depõe o seu amor para com o filho. Já Monick não registra nenhum comentário sobre sua família (pai, mãe e outros parentes mais próximos), além de sua companheira, que dele, espera um filho.

Imagem travestidas

André da Costa Pinto usa imagens de forma a aproximar o espectador como quem permite intimidade com aquelas vidas relatadas. Geralmente a câmera não está em movimento, este sim é dado pelas pessoas e não pela câmera. A relação de intimidade com a cena é dada com meio primeiro plano e close. A maior parte das cenas estão nesses dois enquadramentos. Os depoimentos coletados no vídeo prendem pela emoção o expectador, sobretudo pelo abuso de closes em Amanda e Monick. Nos depoimentos mais significativos, a exemplo dos alunos de Artur (Amanda), são em meio primeiro plano, quando esses narram a experiência de ter um professor travesti. No caso de Monick, a única pessoa que depõe sobre ela é sua companheira Nilda, uma lésbica que está esperando um fillho dela e relata o frenesi da população ao saber que (palavras dela) uma sapatão e um viado serão pais de uma criança. Em Nilda, o diretor explora o plano médio. Os enquadramentos causam uma sensação de familiaridade com todos os personagens envolvidos no documentário, porque quem assiste a ele, não se prende muito a detalhes que vão além dos meneios de cabeça e palavras de cada depoente. Algumas cenas têm plano americano ou grande plano geral, para dar contextualização ao lugar onde aquelas histórias ocorrem. Nesse caso, são cenas onde se mostram o cotidiano das duas personagens em suas funções laborais: Amanda, em sala de aula, lecionando; Monick, na praça onde se prostitui. O enquadramento curioso, no começo do filme, quando os personagens começam a falar de sua apresentação como travesti, é o cenário. Quando Amanda fala, há por trás dela um quadro que remete uma caricatura dela. No caso de Monick, há um espelho por trás, contornado com cabeça de bonecas, que remetem o lado mais caricato do travesti, associado à maquiagem exagerada dessa personagem. No início do filme, o diretor também explora a atitude feminina das personagens, ao relacionar uma à outra, maquiando-se, pondo suas vestes femininas para, então, após saírem de casa, as duas se encontram numa rua de calçamento de pedra, e são diferenciadas pelos calçados que usam. O final do filme, tem a deixa do pai de Amanda, tendo citação transcrita em texto (com conotação moral) e logo após as duas seguem pela rua que parece ser a mesma onde se encontram na cena do começo do documentário.

Que travestismo é esse?

O documentário não tem narrador, toda história é narrada pelos personagens e esses são os responsáveis no que dizem a transmitir o conceito de travestismo na vida de duas personagens. A produção impressiona pelo nível de humanização e como relata a normalidade que personagens tão marginalizados têm na sociedade: possuem dignidade contundente
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Para quem se interessar mais:

PINTO, André da Costa. Amanda e Monick. Documentário-DVD. Produção e direção de André da Costa Pinto. Brasil, 2007. 19 min, colorido, som. Disponível em http://www.portacurtas.com.br/Filme.asp?Cod=9475 acessado em 21 de novembro de 2010.

Imagem: capturada de Festival Brasil No Ar

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