29 de julho de 2017

Cabo de Guerra (ou Tração à Corda)

Há um toque malvado na noite. Aquela mão pesada que passa sobre a minha cabeça, enquanto estou deitado, com sono, e espero adormecer depois de um dia de trabalho e estudo. É um carinho precioso, porque esta mão traz um apanhado de lembranças e me massageia da testa até o começo do pescoço. Tem sido assim nos últimos quase cinco meses da minha vida. Os dedos macios da memória chegam na hora do meu descanso e acariciam minha cabeça com culpa, ansiedade e o cheiro forte do perfume do tempo. Culpo-me por ter no cheiro do tempo a resistência de me levantar todas as manhãs, ansioso, por atravessar a nado o Atlântico e abraçar o velho mundo dos meus colonizadores. Preciso ficar em Vera Cruz, de Claudias e Cunhas, como o Cordeiro sacrificado, para lutar pelo ar tropicaliente em meio à frente fria de um julho aos pedaços? Eu me faço colono na terra plana que recrio sobre o colchão coberto com a manta xadrez em tons de fogo, em que o laranja sobressai entre formas em vermelho e linhas amarelas. O cobertor que me cobre de outras carícias: as ausentes.
Há quatro noites, minhas artérias decidiram se acalmar subitamente, enquanto eu fugia da minha terra recriada; foi quando, ao chão, eu vim entregar meu corpo ao descanso de fundo do poço, à inconsciência, mas havia uma porta branca: segurou minhas ideias perdidas, à entrada do meu universo de poucos livros e muitos fantasmas. Após isso, meu inimigo de sempre - o sistema imune - decidiu encolher de vergonha; encontrei um pneumococo desabrigado. Ofereci meu pulmão. Foram mais dois dias de dor, além de corpo em chamas e frieza nos pés.
Embora eu quisesse enfiar meus dois pés num balde de água quente, aquecer meus dois pilares - sustento da minha posição de bípede -, que na terça-feira me traíram e me fizeram ir ao chão; foquei nas minhas mãos. Essas, frenéticas por dar e receber notícias, testemunhas da mentira que meus olhos já cansados não mais se enganam.
Meu corpo tem tamanha sinergia moldada à dinâmica das conquistas do passado e do presente, desde à lembrança do meu ancestral que foi ao tronco de um árvore cortada apanhar do meu outro ancestral que o comprou numa feira de homens sem liberdade; meu estômago sinaliza as borboletas azuis que batem suas asas para que eu as cuspa à liberdade que um ancestral meu jamais teve.
Foi assim que descobri uma fauna e uma flora nervosas dentro de mim. Foi assim que me levantei outra vez após sentir a malvadeza do toque, hoje, e vim para trincheira resolver de uma vez esta guerra mundial, esta inquietude de Eras.
Onde estão os aliados? Perderam-se todos em meio à fumaça branca e densa da angústia. Perdidos no latifúndio tão grande que sobra espaço para poucos e falta para muitos, aqueles à beira ou à porta do egoísmo, da ignorância e da ganância.
As plantas rasteiras ornamentam a chegada, onde há palmeiras também a oferecer sombra aos vencedores. Aos perdedores, restam folhas secas do outono passado que o vento sopra de volta à saída. Ao fim e ao cabo, saio da minha terra recriada sempre entre tiros, porradas e bombas, derramando lágrimas sobre as folhas secas, de modo que façam o húmus de uma primavera que nunca mais vi nascer deste lado onde a corda arrebentou.

24 de julho de 2017

Lambida

Destino-menino, bora lá!
Para o que der,
Para o que vier?
Quanto há de crescer, envelhecer?
Deixa-me aqui ficar.

Deixa-me estar assim
Num laissez-faire, laissez-passer,
Quando o deus-dará der,
Quando eu novamente acreditar.

Já não posso esperar vir,
Atolado num eterno porvir
Que jamais alcancei,
Quem não mais vai chegar?

Fica de graça, tão barato, dá onda
No mar-conforto do sorriso
Que esconde no fundo o pranto.
Não posso eu viver deste encanto?

Não há sereias no mar!
Não há peixe para comer depois de afogar.
Formigas sobem pelas minhas pernas cansadas.
Porque o doce, que era doce...
Escorre pela pele a baixo
E faz gotas pesadas nos meus pelos.

Já não quero repetir a receita,
Ingredientes que há muito estão cozendo.
Queimou, amor, no forno quente da história.
Deitei-me sobre o amor e dormi neste frio
Enquanto tua língua continua só lambendo.

16 de julho de 2017

Acordo

Caso encontrasse espaço,
Quando buscasse a sorte
Da forma que partilho a vida
Igual seria a morte
Partilhada na língua que fala
E que diz mais a respeito de tudo.

Contudo recomendaria a trilha
Com nada de passos atrás daria.
À frente da minha agonia:
Um traço do meu esboço.

Quão grande tenha sido a lacuna
Vacina para esses dias,
Um lugar de qualquer um de nós,
Um lugar para todos nós -
Um lugar qualquer, um quase-lugar.

Andar sem permitir desviar
Olhar perdido que estava;
Daria mais uma volta por cima,
Daria mais um milhão de léguas;
Andaria como quem leva
A sorte sempre por baixo do plano.

Quando eu estiver sem sono,
Quando não me caiba debaixo dos panos
Que eu viva a vida num canto
Em busca dos teus braços;
Quando os olhos cerrados
Encontrem o calor sob o manto
E durma para agir noutro campo.

Do tamanho do meu esforço,
Será sempre depois o talento.
Jogaria no baú o esboço
E viveria o desenho novo
Aquele que dá cabo à moda
E resgata a tradição de busca.

Escuta! Percebe! Responde!
Eu hei de esperar mais uns anos?
Eu já acumulo planos.
Eu já sinto um sono.
Prefiro fazer um acordo:
Faço tudo como proposto,
Enquanto ainda estou acordado.

5 de julho de 2017

Amanhã-passageiro

Tenho uma coleções de papéis num envelope plástico.
São memórias de quem já dedicou a mim algumas palavras.
De vez em quando volto a elas.
Releio para não esquecer com o passar do tempo tudo aquilo.
Como em outras vezes, papéis me deixaram lágrimas de um tempo bom que não volta.
As lembranças têm este poder: tentativa fracassada de viajar;
Na verdade, a viagem fica presa dentro de mim.
O veículo que locomove no tempo sem sair do lugar;
Combustível  que vaza lento e doloroso
Engrenagem que se move incansavelmente;
Movimento não acelera nem para frente nem para trás.
O movimento em si.
Eu não sou condutor.
Eu não sou veículo.
Eu não sou trajeto.
Eu não sou...
Fiquei ali mesmo no que fui, esta viagem parada ali.
Ali é o lugar que não alcanço.
Meus braços não se deixam mais enganar.
Pedem descanso.
Assim como a cabeça precisa descansar.
Não há mais surpresas nem na pele nem por baixo da pele.
Não há meio do caminho, interrupção.
Há em mim uma estação de serviços às palavras.
Porque neste ir e vir só quem transitou foram elas.
O combustível acabou, a última gota acabou de cair.
A máquina finalmente para.
Dorme, agora!
Amanhã será ontem.
Hoje passa...
Amanhã quem sabe serei passageiro.