19 de dezembro de 2017

Cor de cinza

Restou-me o oxigênio de cada dia; na verdade, pela manhã, saber que estou respirando se tornou o pulsante reagente de todas as coisas que ficaram após o incêndio à noite. Porque normalmente estamos gratos por coisas habituais que de tão triviais já não mais pensamos: como o prazer de respirar. Seja profundamente ou leve como o que se inspira e expira tão comum, tão sem explicação. 
É muito doido pensar nos pormenores das coisas habituais, quase mecânicas. Às vezes, comer por ser a hora da refeição, andar porque existe uma direção rotineira todos os dias, no ir e vir banal de todas a gente. No entanto não ignoro eventos sórdidos como o combustível que se ateia no calor de uma ideia, pouco a pouco e sempre em frente quanto esta rotina de esperar, andar, ir, vir e reagir com o fogo. Deixar queimar, aquecer, consumir em chamas todo o rebento de cada explosão, um passo a mais, um caminho tomado pelo tantos graus elevados que o combustível produz de mim para alguém, e vice-versa, de nós. Deixar tudo fazer brasa, reluzir feito o mais puro brilhante com apenas coisas triviais: um acender, labareda luminosa, anti-escuridão e, ardente, tudo que solta de si em combustão. Depois virar cinzas, cinzas frágeis que qualquer vento parco leva daqui para acolá, faz seu caminho fuliginoso, um traçado gris, um percurso cinzento, vestígio do comburente, sei lá o quê mais... Já foi. 
Não há dívidas, não há saldo, crédito nos resíduos. É estar quite, também desquitado, renúncia do calor, pois acho que as cinzas é o que faz mais sentir frio do que o branco-gelo comercial das tinturas que vendem a alvura de um estado de paz ou o transparente, não se vê, não se sente, não aquece nem arrefece, só em si insignificante e sem notar... 
Uma vez me perguntei porque ficamos grisalhos, fica aquele aspecto cinza pra depois vir o branco e tomar tudo. Eu não sabia a ordem natural, nem sabia o que era bem o trivial, mas é. Hoje, sei. Bem assim: fica cinza, da frieza, para depois ficar branco e vender o símbolo da paz, do sossego, da velhice sem volta e à frente do tempo para depois, há que enterre no escuro do esquecimento e há quem creme, que pinte de cor num dia que parece nublado, cinzento como se o céu não fizesse mais ser teto num dia colorido. Foi assim quando perdi meu avô, foi assim quando perdi algum combustível, aquele exame, aquele teste, aquele vagão, dentre muitas perdas, que muitas ficaram no esquecimento e outras encheram-me de saudades, de cor vibrante, como esta que meu avô me deixa há tantos anos que ainda hoje me lembro e enubla ao passo que corrói. Eu raramente choro os meus mortos depois de algum tempo, mas eu sinto que quem morreu já precisava sair de cena, quer nuble o céu, quer o sol vibre forte e queime como um incêndio que deixará todas as cinzas logo mais. Eu quero sentir, realmente, falta de algumas coisas, algumas pessoas, entes; só não vou mais celebrar com fogo e combustível, liberar tanta energia, queimar tudo para depois ser nada, só cinzas. Não tornará meu avô de volta um dia sequer que eu caminhe à frente, eu ficarei cada vez mais grisalho, cabelos cinzas para depois ficar branco, a velhice me chegar e eu, quiçá, finalmente, saiba o sentido de uma grande paz dentro daqui. Depois disso, pode queimar. Deixe-me ser as cinzas no esquecimento e o vento soprar os rastros como o fio de cabelo que revela o cansaço e a desilusão por ser apenas cinza, ou branco, demais cansado. Que descanse em paz.

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