Quando resumo à coisa, uma incrível palavra que cabe em qualquer entendimento sem precisar de uma definição exata, já estou afastando, ao improviso, a existência daquilo, por sua vez, formatado. Amplificações - sem passar o limite ao encontro de charlatanismos - da necessidade de encaixar coisas, a tal precisão absoluta, tecnicamente invisível, conforme explicou Clarice Lispector, de forma tão bonita, falando da verdade e da perfeição. Então já começo a ficar coisado para aquém e para além de mim, significado mais simples sob quaisquer circunstâncias, sem querer muito aperrear.
Tudo bem, eis aqui um homem aperreado, com a humildade possível de reconhecer aperreios. E já vou avisando que estes não causarão guerras; pontuei a paz linhas atrás.
No Nordeste brasileiro, o verbo aperrear veio do espanhol, que também foi nosso invasor e deixou esta herança linguística. A origem de aperreado está na palavra perro, que em espanhol significa cachorro. A qualidade do aperreado, assim, literalmente é ser alvo do ataque de cães. Isso porque os ferrenhos espanhóis que aqui desembarcaram atiçavam cães ferozes contra nativos, a fim de assustá-los e fazê-los devorarem vivos os pré-colombianos.
Talvez meu medo de cães venha de uma prática muito antes de eu ter existido e, como se sabe, a genética é poderosa e talvez minha geração saiu passando esses genes de tal maneira que, hoje, sou este homem aperreado em busca de equilíbrio.
Em contrapartida, desenvolvi uma paixão imensa por gatos, os bichanos divinamente cultuados por uma civilização muito mais antigas que os castelhanos colonizadores da América. Estou falando dos egípcios, que cultuavam os gatos para que pudessem conter a praga dos roedores que ameaçavam a tão próspera agricultura, além de transmitirem doenças.
Diferentemente dos cachorros, que foram domesticados e perderam suas principais características primárias e, como dito antes, foram adestrados inclusive para assustar pessoas, os gatos, apesar de sua vida doméstica, preservam as funções primárias e nunca foram exatamente domados. É um excelente caçador, por instinto. Esse comportamento deu aos felinos uma característica bem peculiar. Atacam apenas sob ameaça ou necessidade de se alimentar. Lembro-me de certa vez meu gato atacar um passarinho que se debatia na varanda. Neste frenesi, representou uma ameaça e foi logo tragado pelas unhas e dentes do meu bicho. O senso de coletividade fez de mim, segundo entendi novamente ao ler um artigo, o porquê de eu ter sido presenteado com aquela caça. Quando coloco seu alimento na tigela é como se eu tivesse repartindo minha caça com ele. Portanto, normal que ele venha dividir a sua comigo. Não existe o ditado egoísta para esta relação: "farinha pouco, meu pirão primeiro".
A noção de companhia fez de mim ainda mais entusiasta da criação. Companheiro da casa, até hoje tenho um gato de 16 anos (quase 17). Até hoje. Este percurso natural da máquina viva encerra-se no ciclo, quando não da intervenção acidental, seu tempo de vida. O senhor felpudo, ademais de ser um paciente renal, teve diagnosticada metástase pulmonar. O sofrimento tem se arrastado por muitos meses, os sintomas são os mais dolorosos possíveis para mim, avalia para ele.
Então, na data de hoje, autorizei a eutanásia, de coração partido, porque a saudade de um companheiro de longa data só me traz um aperreio imensurável. Outro aperreio é entender que a dor do outro é maior que a minha. Com a racionalidade que me distingue do instinto selvagem, sem esperar em sobrenaturalidades a postergação de um ciclo que já se encerra, considero na memória textual a expansão do significado de estimação. Um adeus é, talvez, um aperreio do tamanho que se dá à sensibilidade, mas o descanso sempre será o maior dos equilíbrios e, certamente, a tradução mais perfeita da liberdade que o amor nos traz.
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