25 de outubro de 2017

Quando nasce o bailarino

Buscava incessantemente falar pelos cotovelos, dizer a todo tempo alguma coisa sobre algum assunto toda vez que não queria escutar aquela voz do outro lado da parede.
Havia uma barreira que dificultava entender; não conseguia captar um verbo sequer, mas sabia que ali do outro lado havia alguém a dizer e, às vezes, até cantar. Mas não entendia. Não percebia e fugia daquele ruído constante com agressão de quem falava mais alto para vencer a competição de entendimentos. 
Na hora de deitar, o silêncio era mais perturbador de todas as horas. Punha o fone de ouvido, para escutar... sei lá, gemidos, música, piada, desenho... até a hora que o sono chegasse e não tivesse tempo de novamente experimentar o que escondia aquela parede de transtorno. Dormia como um deleite de um fino fio de lã branca a ponto de arrebentar, todos os dias, com a força do som. Até de manhã, quando ele partia, era a hora de acordar e novamente entrar na corrente de elos ligados por um discurso político, um papo de otário, um grito ao sol, ou, se chovia, uma canção desafinada na voz para embalar a queda dos pingos d'água.
Tomava qualquer inciativa, depressa, sem pensar: ia... em frente ao mar, ouvir as ondas se debruçarem sobre a areia quente enquanto criança brincavam, construíam seus castelos até vir a maré alta e arruiná-los. Ou ouvir os cães latindo felizes ao se juntarem ao coro infantil de uma brincadeira na cidade litorânea.
No caminho entre a casa e a praia, o fone de ouvido plugado ao telefone repetia a mesma canção de três décadas atrás e quatro casas regressivas no jogo de tabuleiro de ir e vir até chegar ao pódio.
Chegada. Chegado a casa, direto ao banheiro, o barulho da água do chuveiro escorria e novamente a parede, esconderijo de canos de pressão que lhe jogavam toda a força do banho, também ali se ruía o mais temível. Às vezes, a solução era cantar amadoramente um lindo refrão do corpo pagante ensaboado, com espumas de limpeza, alvura necessária para desinfetar a maresia toda grudada na pele morena clara. Queria até do friccionar da toalha enxugando o corpo para o próximo ato, escutar o mínimo atrito entre pano e pelos, entre peso e pano, entre pano e pano pra manga desse contínuo caminho até o barulho mais poderoso.
Desejava trovões fortes, até mitos da tempestade, desejava apenas; mas o verão se aproximava e a existência tempo nublado parecia a cada dia desistir de ajudar.
Zumbido, ruído, barulho, ringtones, apocalipse, trombetas, corais de anjos, demônios, insanidade, qualquer transe, qualquer trânsito caótico, buzina na esquina ao engarrafamento, qualquer, mesmo, que fosse a qualidade de som, que fosse bem-vindo.
Até o dia em que pegou o martelo e detonou todas as paredes, e só existia o chão, que oportuno ao som que queria, provocativo, insinuante, testar o último recurso de se esconder, agora embaixo de tudo, para sussurrar (que fosse), mas deu sorte de saber, que estar em pé, pisava o inimigo mais ruidoso de todo universo. 
Foi, então, que se viu sem estar cercado, o inimigo que estava ao lado, agora pisado no chão debaixo de sua sensação mais feliz: por cima, na estreia de seus novos sapatos; um sapateado improvisado, produzia a dança mais esquisita. Sem palco, sem público, mas no movimento do corpo vitorioso que venceu o som tenebroso, quando nasceu de novo. Fez-se um bailarino e calou. 

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