31 de julho de 2020

Drama polaco

O coração estava encostado numa parede parede fria de cor cinzenta. Talvez fosse a previsão de um inverno por chegar, e parece que já previam-se dois. A parede era um cenário contínuo numa vida sem sensações adversas ao cotidiano descrente. Dizia-me o terapeuta que valente eu era, e aqui cheguei com essa crença que fazia tempo que não conquistava. Meti então reboco terracota, quente e úmido que trouxe do chão onde nasci, como bagagem especialmente crua, dos orgânicos aos quais me submeti. Fusões de outros lugares acrescentaram mais solidez ao pedaço: a parede e o coração similares, aos remendos, agora oportunidade paliativa para um prazo de um tempo em recuperação. Orgânicos, de sangue, de solo, de músculo e todas as diminutas latências faziam pulsar, quiçá fundirem-se. 
Chegaste com a leveza de quem em idade construtiva somava-se à minha também em construção, mais tardia e também mais severa. Alicerces do tempo contam continuamente em direção ao topo, telhado de vidro - não te esqueças -, essas paredes que levantamos todos os dias e eles vinham sendo há algumas semanas e intensamente levando-me a perceber quatro mãos à obra. E foram planos até sei lá qual ano, essas idiotices que o beijo e o abraço sempre liberam ao pensamento. Destituído deste engano, no entanto, só ria. Lembro-me bem onde estávamos com essa regalia que decidimos nos dar em tempos de tirar de nós o tempo que tínhamos para dedicarmos à coisa alguma, como essa, que existia. Essa coisa sem nome que não nos privou do óbvio, porque nossos sorrisos já diziam até a tampa da garrafa e a ponta do fumo, entre os goles de sumo, a fazer suprassumo sobre a incidência do rótulo de identificação desta bebida. Eu bebi; tu bebeste. Talvez minha necessidade habitual de outros tóxicos e outras drogas não me fizerem ser o mais apto a permitir tamanha rebeldia. Olha a idade que tenho! É a mesma do meu fígado e do coração encostado. 
Responsável por envolver tua família num diálogo aberto, talvez mais esperto que o meu medo de envolver a minha; ora, quanta credibilidade eu tinha?! Mas não seria irresponsável de envolver tantos nomes que eram fadados a uma coleção de histórias que temos, como audiência das tentativas. Quem sabe nada tentamos. Nada cobramos ao passo que nossa presença sempre fora um passo voluntário a caminho da minha ou da tua casa, esses abrigos exclusivos de nos livrar de um olhar impiedoso e de um vigoroso vírus, na pandemia. 
A casa caiu, a minha ruiu porque um ciclone passou por aqui causando danos, inclusive neste nosso abrigo que prevaleceu testemunhando os filmes a que assistíamos, as palavras que líamos, as músicas que compartilhamos e depois disseminamos entre nossos amigos, a pele que se unia, os beijos que apeteciam na quentura contrastante desse tempo frio na cidade, os abraços no momento certo e o sexo que fortalecia. Não era só ele do lado de cá desse terreno minado de coisas que pisas e não sei quais. Haveria de não saber, penso. Talvez eu tenha notado no discurso uma lacuna dessa parte que ruía, ou que causava implosão à maneira em que te escondias atrás das tuas paredes de proteção. De forma que eu não tinha permissão, não invadia. Logo outro momento que chegava, abria a porta com o mesmo sorriso que provocavas com o teu provocado por minha porta aberta e minha mão deserta pedindo a tua. A casa está de pé ainda. danificada pelo ciclone, mas alguma manutenção já feita me preserva de contato com o tempo rude da rua. 
E nesta última vez que vieste, reafirmaste nas palavras e em todos os sentidos que eu via, ainda que aquele teu sorriso me fizesse dar privilégios, mas nunca em detrimento de qualquer pedaço teu que sentia. Abruptamente, sob o céu nessa rua em que vivo, já à noite, notaste alguma decisão tua, mas não disseste. Pretexto da pandemia que fazia nos separar por um tempo de incubação da previsão que manifestava-se no outro dia, ao teus pais socorrerem tua tia, e meus braços disseram "até breve" tão doloroso quanto essa prosa cansativa com aliteração.
A previsão era essa, esse hiato que já vai durar quatorze dias, mas daquele momento até agora nenhuma pronúncia dessas alcunhas engraçadas que vinhas dizendo com o sorriso jovem escutado na tua voz. Quanta seriedade e falta de informação. Não cobrei como nada em todo esse tempo. Concordei com o que parecia um cuidado com a nossa saúde numa expectativa duradoura de uma resposta que já não tenho desde o pretexto. Fiquei com a solidão e algumas instruções: manual de filosofia, passando por Bataille, Nietzsche e outros nomes que me fazem hoje ter medo de até o teu pronunciar mais alto que meu pensamento. Voltei-me à condição constitutiva que me deram os astros da minha justificação. Sim, é teoria. Mas na prática eu fiquei com um pranto entalado, por algumas vezes o soltei, como hoje fiz esperando que seja a última.

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