30 de novembro de 2020

Receita de mito cozido

Eu não sei por quanto tempo a gente se interessa por esta vida às pressas para tudo ocorrer e correr bem. Quantas vezes forem necessárias, repetirei os bordões de um cansaço há muito já cozido, ecoando nos versos-grito. 

Da quinta-feira em diante, a de antes, quando eu te falava sobre sangue e sal, passei a discordar de tudo que não fosse contribuir para os ingredientes. Então veio uma disfonia com acordes de resistência, medo, e teus olhos pedindo mais biscoitos da sorte. Na sexta-feira um alcance maior, aquela experiência de gaiato no navio mais sofisticado em seu passeio pelas Bahamas... vieste no sábado, em teoria, mas na prática, o domingo estava na sala de estar - já entrando, mais que estando - quando pediste socorro naquela agonia toda da tua mais-valia, do teu cuidado, do teu carreiro e o teu apego ao destino.

Eu fiquei agonizando na experiência de fronteira: do meu lado certo, já tinha incerteza; do teu lado, eu só queria caminhar... sabes, ouvir tua voz em meio a esses ventos coloridos de tinta em pó incomodando que eu olhe adiante, como a promessa do arco-íris. E não soubeste da metade das agonias, ainda: do domingo, da madrugada, da vida inteira intercalada como furos no navio em que vão doutores, ex-amores, o armário de outrem, o terceiro sentido do movimento de translação. Transladam corpo, alma, crenças: vaivém das chegadas e partidas.

Poderia pensar no futuro com a ansiedade de sempre, em querer criar cálculos de memória, anotar cada moeda que eu investia, citar Camões e algum pretexto. Poderia, mas não. Chamaria o presente tempo dos justos buscando ajustar horários, conciliar as dívidas com o fornecedor de lucro. Já esteve passado mais que cru o envolto tempo em banho-maria. Ouve o relógio na parede rebocada. Só isso.

Quem disse que tua mão não encontra a luva? Quem me disse que a cabidela salgada dos sonhos cozinhou a mais de cem graus? Quem partiu depressa ao Oeste foi atrás do que não tinha. Quem ficou no continente quando eu parti já arrumou dois tamanhos diferentes para seus trajes. 

Não sei de quanto tempo se fez o perecível.  Esta comida pelas beiras foi alcançando o prato frio. Porque andei pra lá e pra cá sem notar a circunferência. Deu-me prazo o oráculo das friezas para que eu devolva cada cubo de gelo que pedi para conservar: eu, a minha verdade e a vontade de te ver fora deste caldeirão. 

26 de agosto de 2020

Dança do foragido

nada prometi pra ninguém,

ainda assim tenho compromisso

guardado em cartas na manga; 

vai que receba golpe às costas

então justificaria meu sumiço:

talvez a última lembrança 

de um verso em branco

pra seguir o baile que cansa.

2 de agosto de 2020

Internet das coisas

Para além da iconografia dos anos 1980, sendo filho desses, talvez mais entusiasta do que deveria, reconheço a comodidade do streaming possível hoje em dia. Minha operadora de telefone celular me deu, no pacote, acesso a uma dessas plataformas de música. Fim de semana é um tempinho de preguiça, a gente se mete no casulo confortável da cortina de fumaça que nos esconde do caralho a quatro: lobo em pele de cordeiro, asno gerindo o Executivo federal, bichos diversos. Padrões de dados conseguem ser mais que gatilhos quando reúnem a matemática com a resolução de sentidos abstratos, algoritmos vêm e... tome, joga "Eternal Flame" bem no centro do marasmo de domingo. 
Havia uma época em que a energia elétrica era mais essencial que sinal de dados móveis. No entanto, quando era interrompida, no aparelho Nokia de tela dicromática, só nos restavam Snake Game e as duas bandas de rádio na penumbra. Quanta falta fazia o led, hein?! O barulhinho insuportável daquele jogo me irritava absolutamente. Modo silencioso. Ligar a rádio, pensava. Eu gostava da Antena 1 (ela ainda existe?); fui abduzido pelo poder do streaming, olha aí! Nem tudo está vencido, algumas coisas dos tempos outros são mais interessantes, digamos, mais profundo que o subcutâneo. A solidez de uma infância marcada mais pela televisão do que o rádio, esse supria em momentos sem eletricidade, porque aquela não funcionava sem ligação aos 220v. 
Gostava desse contato universal que a rádio me dava com os sentimentos universais. A inocência abestalhada daquela época era osmótica. Não fosse isso, jamais engatilharia os pandêmicos 2020 com quase duas décadas atrás. Era uma adolescente inquieto, rebelde no máximo em jogar água oxigenada no cabelo, aos quinze, e ficar com o alaranjado passeando entre o caminho da escola e a minha casa. Não bebia álcool, não fumava planta alguma, não namorava ninguém, não fazia sentido externamente ainda que houvesse já rendez-vous doideira que só saía da cabeça a um caderno Tilibra em que cada folha continha uma dízima, aquela fração de um universo esquisito em que passeavam os mais monstruosos bichos ao som de um ornitorrinco preso num apartamento de aproximadamente cem metros quadrados. Já lia Sartre - As Palavras - e entendia porra nenhuma, mas foi um avanço, porque me deixava curioso e de brinde, veio-me Simone. Casal porreta! Eu não tinha computador em casa. Acho que pouca gente à época tinha. Eu só conhecia os do colégio Marista, mas não estava ainda conectado com o mundo lá fora. Fazia valer cada instante na televisão e, à falta de eletricidade, o rádio. Que pavorosa aquela situação. Ter que suportar aquela geração que me fez usar toda aquela ridiculosidade do tênis camurça preto e desfilar umas mochilas horríveis com meia dúzia de brochuras dentro. Ridículo eu era com aquele cabelo laranja ao entrar na sala ouvir o bullying na canção coletiva de uma dessas novelas da Globo. Estão todos perdoados; deus, inclusive, também o está. 
Ah, deixe-me correr desse tempo, possibilidades neoliberais começavam a perturbar-me ainda mais com a iminência de um tucano governando. Então fico nesse devir, ininterrupções nos fluxos do tempo, que agora tenho, entre a fatídica lembrança de uma escola cristã em que a menina se matou no banheiro com um tiro no peito e, ainda assim, toda semana parecia que a comunhão tinha sucesso. Soube que até hoje fazem uma festa de confraternização, uma pequena micareta para a gente encher a cara e tirar autorretratos com frases de efeito. Até parece... tudo irmão ali, sob a fragilidade dos afetos e uma lógica capitalista cada vez mais ferrenha. 
Voltando à preguiça deste domingo, que junto à covardia, são razões e impedimentos para que humanidade avance. Juro que não vou me furtar de beber a água dessa gôndola, porque ela custa apenas duas moedas do parco dinheiro. Já somou? No fim das contas... tudo líquido se dissolvendo rapidamente. Ficou essa meleira imensa, lamacenta, porque, segundo outro engano, sou signo de terra, regido por Saturno e seus anéis de vidro, hoje todos quebrados. Trago a poeira do barro e sopro na cara de quem desdenha minha situação discursiva de falar "sustenido" em vez de hashtag, e sou metralhado por colocar ponto final depois de cumprimentar, num aplicativo de mensagem instantânea, com um "olá" convidativo para prosa sem fim, se me permitir. Não sei, nunca dura mais que uma estação do ano. Então vamos colocar culpas no papo de otário, como "constam nos astros, nos signos, nos búzios..." e como constam nos manuais da próxima ética aguante e o espírito do capitão. Com certeza, para mim, há algo de mítico no início de tudo, quando ela cantou "close your eyes, give me your hand, darling..."  

31 de julho de 2020

Drama polaco

O coração estava encostado numa parede parede fria de cor cinzenta. Talvez fosse a previsão de um inverno por chegar, e parece que já previam-se dois. A parede era um cenário contínuo numa vida sem sensações adversas ao cotidiano descrente. Dizia-me o terapeuta que valente eu era, e aqui cheguei com essa crença que fazia tempo que não conquistava. Meti então reboco terracota, quente e úmido que trouxe do chão onde nasci, como bagagem especialmente crua, dos orgânicos aos quais me submeti. Fusões de outros lugares acrescentaram mais solidez ao pedaço: a parede e o coração similares, aos remendos, agora oportunidade paliativa para um prazo de um tempo em recuperação. Orgânicos, de sangue, de solo, de músculo e todas as diminutas latências faziam pulsar, quiçá fundirem-se. 
Chegaste com a leveza de quem em idade construtiva somava-se à minha também em construção, mais tardia e também mais severa. Alicerces do tempo contam continuamente em direção ao topo, telhado de vidro - não te esqueças -, essas paredes que levantamos todos os dias e eles vinham sendo há algumas semanas e intensamente levando-me a perceber quatro mãos à obra. E foram planos até sei lá qual ano, essas idiotices que o beijo e o abraço sempre liberam ao pensamento. Destituído deste engano, no entanto, só ria. Lembro-me bem onde estávamos com essa regalia que decidimos nos dar em tempos de tirar de nós o tempo que tínhamos para dedicarmos à coisa alguma, como essa, que existia. Essa coisa sem nome que não nos privou do óbvio, porque nossos sorrisos já diziam até a tampa da garrafa e a ponta do fumo, entre os goles de sumo, a fazer suprassumo sobre a incidência do rótulo de identificação desta bebida. Eu bebi; tu bebeste. Talvez minha necessidade habitual de outros tóxicos e outras drogas não me fizerem ser o mais apto a permitir tamanha rebeldia. Olha a idade que tenho! É a mesma do meu fígado e do coração encostado. 
Responsável por envolver tua família num diálogo aberto, talvez mais esperto que o meu medo de envolver a minha; ora, quanta credibilidade eu tinha?! Mas não seria irresponsável de envolver tantos nomes que eram fadados a uma coleção de histórias que temos, como audiência das tentativas. Quem sabe nada tentamos. Nada cobramos ao passo que nossa presença sempre fora um passo voluntário a caminho da minha ou da tua casa, esses abrigos exclusivos de nos livrar de um olhar impiedoso e de um vigoroso vírus, na pandemia. 
A casa caiu, a minha ruiu porque um ciclone passou por aqui causando danos, inclusive neste nosso abrigo que prevaleceu testemunhando os filmes a que assistíamos, as palavras que líamos, as músicas que compartilhamos e depois disseminamos entre nossos amigos, a pele que se unia, os beijos que apeteciam na quentura contrastante desse tempo frio na cidade, os abraços no momento certo e o sexo que fortalecia. Não era só ele do lado de cá desse terreno minado de coisas que pisas e não sei quais. Haveria de não saber, penso. Talvez eu tenha notado no discurso uma lacuna dessa parte que ruía, ou que causava implosão à maneira em que te escondias atrás das tuas paredes de proteção. De forma que eu não tinha permissão, não invadia. Logo outro momento que chegava, abria a porta com o mesmo sorriso que provocavas com o teu provocado por minha porta aberta e minha mão deserta pedindo a tua. A casa está de pé ainda. danificada pelo ciclone, mas alguma manutenção já feita me preserva de contato com o tempo rude da rua. 
E nesta última vez que vieste, reafirmaste nas palavras e em todos os sentidos que eu via, ainda que aquele teu sorriso me fizesse dar privilégios, mas nunca em detrimento de qualquer pedaço teu que sentia. Abruptamente, sob o céu nessa rua em que vivo, já à noite, notaste alguma decisão tua, mas não disseste. Pretexto da pandemia que fazia nos separar por um tempo de incubação da previsão que manifestava-se no outro dia, ao teus pais socorrerem tua tia, e meus braços disseram "até breve" tão doloroso quanto essa prosa cansativa com aliteração.
A previsão era essa, esse hiato que já vai durar quatorze dias, mas daquele momento até agora nenhuma pronúncia dessas alcunhas engraçadas que vinhas dizendo com o sorriso jovem escutado na tua voz. Quanta seriedade e falta de informação. Não cobrei como nada em todo esse tempo. Concordei com o que parecia um cuidado com a nossa saúde numa expectativa duradoura de uma resposta que já não tenho desde o pretexto. Fiquei com a solidão e algumas instruções: manual de filosofia, passando por Bataille, Nietzsche e outros nomes que me fazem hoje ter medo de até o teu pronunciar mais alto que meu pensamento. Voltei-me à condição constitutiva que me deram os astros da minha justificação. Sim, é teoria. Mas na prática eu fiquei com um pranto entalado, por algumas vezes o soltei, como hoje fiz esperando que seja a última.

28 de julho de 2020

In bocca al lupo

Recomendamos a nova interface para melhor aproveitamento dos recursos.

Matilde me ligou às cinco da manhã. Puta que pariu... cin-co ho-ras da man-hã!
Foi um susto tremendo. Ainda estava escuro e tinha dormido tão cedo que acho que faltavam mais umas duas horas de descanso...
Cinco segundos de quase silenciarem o ring tone e me permitir ao privilégio do quente edredão ainda com aquele clima manso de inverno com todo o silêncio dos arredores.

- Olá. - num cumprimento de espanto e insatisfação - Não me traga notícias pandêmicas, já chega!

Depois dali, a bêbada já soltou a gargalhada habitual e começou a falar da sua viagem a Viena, que fazia falta. Ela sabia que eu adorava ouvir aquela história e tinha um motivo de ela ligar e contar o episódio mais uma vez.
Mulher infeliz, sempre bêbada e confluente em nossas abstrações tão comuns. Reuniam ambos os ébrios da vida numa mesa de bar imaginária que sempre considerávamos a Jugend que habitava o mosaico das folhas que sobreviveram à imaginação fértil do nosso estado de art nouveau. Portávamo-nos como dois jovens errantes trombando acidentalmente na Avenida da Boavista. Em vez de pedir desculpas, olhamo-nos com retinas apaixonadas e dali o sorriso foi uma rotina. Ela estava bêbada; eu, fugindo sempre do lugar anterior.

*****

- "Santé!" Com o cantil à porta do museu, brindava às coisas bonitas e materiais da cena, porque o ambiente, o organismo e os fenômenos físicos são matérias essenciais para a relação dialética fazer sentido pr'aquela visita, que seja. - "Christian Witt-Dörring is here?", perguntou, com um bafo da fermentação de açúcares, diante da entrada ao abrigo da Coleção Permanente Viena 1900. - História hilária! - A louca procurava o curador. E saiu comentando peça por peça para o seu então namorado Joaquim, até chegar defronte ao mosaico que tanto eu quanto ela tínhamos admiração profunda. E soltou um suspiro com a frase mais engraçada que já se ouviu dentro de um lugar dessa estirpe: "Se não fosse Adolphe, qualquer um dos Stoclet poderia me comer!", saindo de cena mais uma vez com a impunidade de quem caça dotes pictóricos. Tirou um pedaço de papel da mão, e entregou à guia: "give this to Christian Witt-Dörring, please!". No pedaço de papel estava seu número de telefone.

*****

Pensei na dimensão da ideia; é a única reflexão que faço toda vez que escuto essa história. A gente tem metas na vida. Elas podem ser descontextualizadas no plano macroscópico. Mas no íntimo, esse Norte sempre vai apontar a direção de nossas escolhas e também de algumas atitudes. Eu compreendi a atitude da Matilde na primeira vez que ela me contou o causo. Não à toa rimos ao acidente que nos uniu pelo resto dos dias, em vez de desculparmo-nos e seguir viagem pós-diplomática - as etiquetas que trazemos de casa à rua para justificar todas as oportunidades que perdemos.
Uma ligação às cinco horas da manhã poderia passar como um intranquilo momento ao telefone com uma bêbada infeliz e com todas sua nostalgie de l'Occupation. Há uma razão em todo pessimismo metódico que nunca mais vai encontrar onde se encontra a justificação largada ao cosmo, sei lá, até aos zodíacos, celtas, astecas. Em Matilde, encontro melhor maneira de sentir o que irremediável.
E ela se despede de mim sempre me chamando de Príncipe Galeotto.

- "Ciao, Principe Galeotto!"

Eu só tenho a sorte de manter o espírito no Jungendstill.

26 de julho de 2020

cálice da indigestão

se há um porquê das circunstâncias
a cada dia, uma instância de exasperar,
vai no todo-meu:
circunstância outra, outra margem,
o fio oculto, a palavra maldita -
outra vez não dita -
o curto-circuito naquela energia,
a noite que se faz dia: e escura
e o desmantelo de andar.
que covardia!

é, por fim, o tamanho do alvo
e o respaldo da referência,
onde brincam nos abrigos de enfermos
respostas tolhidas sob subterfúgio,
esta cera quente enrijecendo mãos.
que não saram até o sol nascer de novo.
derretam-se móveis do cheiro longe
das folhas de chá que secaram na pia!

agora estou na sala
de espera, com exaspero;
gritam antifascistas sei lá onde...
não escuto, há silêncio ou ditadura?
quem dita porquês e dita entre dedos
que não toco, que não me tocam -
formato inválido! -
toco então calcanhar no chão
e meu joelho sinaliza
noventa graus da canela à coxa...
poxa, que agonia!

cantaram esses dias:
chico.
milton.
pediam para afastar o cálice.
eu, órfão de deus
e órfão de crença;
do céu até aqui tudo demora:
subterfúgio, fadiga e doença...
"pai, afasta de mim esse cálice!"
cale-se, pai, mas o silêncio apavora!

14 de julho de 2020

sobremesa do apocalipse

bombozinho de pinhão
com recheio de avelã
coberto com uma deliciosa calda
de chocolate meio amargo
baforando na minha cara
de quem não tem salvação

8 de julho de 2020

palavra batida

apanhei uma folha de papel em branco,
caneta azul, escrevi quatro versos.
li tudo aquilo como quem tem fome ao meio-dia.
comi a mistura, amassei a folha de papel, deitei-a ao lixo.
palavras estão no meu estômago azul,
vazão ao peristaltismo;
e não tarda em chegar,
meu ouvido terá vitamina pronta,
batida com liquidificador na tua língua.

8 de abril de 2020

Sobre saudade

Sobre saudade, algumas coisas pontuais: alguns textos com pontos finais, vírgulas; cartas com remetente dito e certo; o português convalido até na voz que expõe a menos de dois metros de distância, numa circunstância que favorece ao pé de orelha. Alguns nomes anunciados sob o convite à Garça Torta; um canga de praia forrada na areia e os risos dos outros rapazes veranistas no terreno todo pintado de branco com um verde ao fundo; no canto superior da imagem, o azul bem-mais-azul do que todos os azuis já vistos. Alguns abusos: da Bia querendo a atenção a si e todo o planeta redondo dando voltas em torno de sua luz própria, a menina-sol, quando já eu fazia quarentena num quarto escuro por dois anos de vida. Apenas existindo. Saudade dos abusos de uma mãe solitária e testemunha daquela agonia. Não faltava uma preocupação: era em excesso, e valia. Eu tinha um posto só pra mim, nas noites em que a sede e a solidão decidiam sair de mãos dadas à esquina, e ali eu fui conhecendo as mais diferentes divagações, todas legítimas; umas absurdamente desprezíveis; outras, de guardar com todo o cuidado da memória e preencher linhas de tornar gente simples em herói, mesmo que de uma noite em que a sede se saciou, foi embora, ao egoísmo do imediato, e a solidão continuava transeunte no raio de poucos metros. Alguns diálogos fecundos; de 'bom dia' embrionário, dali a tanto ou a um bocado, nascia mais uma companhia. De algum 'bom dia' com direito à resposta com mesmos adjetivo e substantivo, por educação, que seja, mais por humanidade. Saudade de alguns poucos nomes que deixei e que não me deixam esquecer; tão poucos que na minha agenda de chamadas sempre estão presentes, os mesmos, repetidos, leais, do mesmo jargão, recíproca é verdadeira, sabe? Alguns que vão e vem, assim como venho e vou, mas estamos indo todos nós e sempre haverá uma vontade grande de dividir um café com cuscuz à mesa, e não há mais tristeza se a barriga está cheia e o coração preenchido.

26 de fevereiro de 2020

Templo da língua muda

Uma literatura absurda; não apenas pela forma. Continha versos, versus recorrente, pois sempre. Parece que me coloco como oposto de tudo aquilo que parece ser eu numa espécie mais sofisticada da língua na vida. Com brio nas arestas, até; polimento das coisas para luzir no alto das suas procurações. Diz-se procurado, acha-se no seu predicativo, um sujeito estranho; menos mal: existente! Conteúdo, meu caro esquisito verbo de ligação, talvez comece no sujeito elíptico. Por que ele se esconde nas suas desinências? Não, não sei o porquê.
Artimanhas da língua, uma sintaxe onde me perco em análises das próprias produções, uma autocrítica com status de análise. Difícil compreender o que se diz; mais difícil depreender a função de desdizer, beirando à semântica da insuficiência. Uma análise sintática, quase psicanalítica: ficar interpretando o dito pelo não dito.
Escrever conteúdo de forma frenética para encontrar deus no altar, nas substantivas subjetivas, encher de oferendas e orações lacunas de não dizeres. E, depois, no que está dado, no seu veredito, desinfetar o predicativo do sujeito com água benta da saliva que pinga da língua muda..

17 de fevereiro de 2020

Duplo ego

Eu tenho vontade de escrever um texto lindo para você. Sabe, ultimamente tenho essa vontade; mas estou inseguro quanto às palavras a usar, e se elas não forem lindas o suficiente?
Novamente, tenho aquela ideia vaga e a ansiedade da manhã, faz tempo que acordava às manhãs sem saber nem de mim. E se você me perguntar "o que é isso?", eu não vou saber lhe responder, eu nem estaria apto a achar umas palavras tão bonitas no meu baú fechado há tanto tempo, pois esta vontade - tanto a de escrever a você quanto a de achar as palavras mais bonitas - não passa, e não é uma caixa onde guardo coisas bonitas mas velhas que lhe dissesse sobre o entusiasmo, o sorriso dos novos planos, a outra vontade de ter planos e os novos caminhos me chamando. Você consegue perceber que tenho planos? Havia um tempo não planejado, mas sabia que ele se perdeu ali noutro tempo que não havia você, e não havia coisa alguma. E, de repente, eu acho suficiente ter esta vontade de escrever um texto lindo para você... E também eu já vou me esquecendo do baú desde que eu consegui perceber que também tenho uma coleção de palavras bonitas que também você anda me dizendo. Quem sabe a gente tenha essa parceria de escrever um ao outro e até a palavra mais doída, que esteja solta ou já guardada, ou qualquer palavra, ou nem importa a qualidade da palavra... Se ontem a palavra doída machucou um pedaço do dia, veio a palavra bonita e soprou onde ardia.
Agora até o silêncio anda dizendo coisas; o silêncio como intervalo das palavras escritas, esse mesmo para ouvir outras formas de expressão como o traço que se inicia.