27 de agosto de 2017

Tema da Passagem

Dizem do rei caído de seu cavalo, foi o joio?
Noutro tempo, bem ali no sítio da Casa da Quintã,
Foi onde desci daquele progresso em comboio
Para os braços de ontem, às vésperas de amanhã.

N'alguns minutos à tua espera, todo o afã
À entrada de uma estação quase vazia
E, no presente, o meio de uma estirpe alemã
Chegaria a tempo em transporte à primeira vigaria.

Duas mulheres a receber-me com simpatia;
A filha da outra, que uma geração 
No ventre dela quão breve far-se-ia.
Enquanto meu ventre apertava a emoção.

Fui bem-vindo entre a bem-aventurança
Dos filhos da dona com sorriso no rosto,
Filhos do orago a quem a terra, à bonança,
Já traz romântico patrimônio no composto.

Houve, àquela morada cuja carta enviada 
Neste agosto a celebrar tão nobre data,
Visita breve, mas que a carta leve, abreviada,
Novamente a recompor tanta estima nata.

Foi de passagem que estive, e ainda assim
A euforia contive para memorizar o trajeto
E retornar ao lar no dia de hoje, enfim,
A dar-te, no sonho da manhã, todo meu afeto. 

25 de agosto de 2017

Rosa dos ventos que avisou

Eu tinha te falado: o que construímos naquele tempo, naquela casa sem limpeza, naquela rua de um tenente qualquer, na cidade onde se fez bonito tudo que era novo e não iria se repetir se dependesse de uma força que não tínhamos coragem de enfrentar. Era o que deveria ficar como cristal de um palácio todo dele feito, com vista ao rio; à vista, porque, a prazo, vai se esgotando com os deslizes de dia após dia.
Eu tinha pensado nesta dificuldade que teríamos, nesta saudade quebrantada em pedacinhos de memórias, em saudade incrementada pelo dissabor do desuso dos nossos abraços, dos nossos beijos e o afeto que ficariam sempre mais longe possível entre dois pontos e a linha diagonal que não te traria aqui nem me levaria a ti; só rumores, só nós dois de cada lado, e nenhuma data definida para viajar de vez.
Eu tinha chorado uma noite inteira, lembras-te? Foi quando me faltou tudo, onde faltaram mais alguns dias, mais alguns meses que nós temíamos desde aquele outubro recriado na vida de cada um.
Eu tinha escutado um "até logo" ao ouvido, à porta do embarque, à porta da minha saída, quase uma expulsão. Como quem queria acreditar quanto tempo e falta pouco para o logo que nunca soube contar nos dedos das minhas mãos. Haja dedos, haja o que houver, até riscos de lápis num papel: são crescentes e mais parecem afastar do que aproximar.
Eu tinha chegado a casa, recepção tão quente, mas ainda havia em mim o olhar ao que ficou, pois ficou lá, o que uma voz em um "até breve" me amoleceram e requisitaram aquilo que acho mais valioso em mim; deixei antes de entrar naquele avião. Acho que custa tanto perceber que histórias nunca são banais, mas, se dou um espaço e um tempo de mim, e até o mais que tiver ao alcance dos meus sonhos, jamais acreditarei no fim.
Eu tinha ido à escola, ao trabalho, à rua aberta, todo fechado na minha possibilidade perdida na esquina ou na mesa, solidarizar um pouco da grandeza que ainda guardo neste coração invicto até o dia de hoje.
Eu tinha voltado a dizer que sim, eu tinha voltado a dizer que não; eu tinha, depois não tinha mais. É só um trajeto de ida e volta entre querer e precisar e não poder e resmungar.
Eu tinha falado, eu tinha palavras, agora eu não tenho mais nada novo, eu vivo a repetir verbos e adjetivoso, fico procurando sinônimos para dizer a mesma coisa, tentando parecer novidade, todos os dias que são os mesmos, até que descanse quando um bocado de terra estiver sobre mim. É uma marcha fúnebre que cantam lá fora? É o disco arranhado que a agulha que lê e tropeça na linha profunda do risco que se fez em cima da parte onde a canção diz (e repete) o único som?
Eu tinha esquecido: já não temos mais aquilo. Nem sei onde procurar. Estou tentando recomeçar nas palavras que hoje escutei da voz gravada de Carlos Paredes: "Seria necessário voltar a repicar esses discos para poder avaliar bem coisas que talvez nos esclarecessem e nos abrissem novos caminhos." Quando há o finalzinho a dizer sobre os caminhos novos, mais atuais, sobre uma orientação nova.
Eu tinha imaginado: quem precisa orientar-se? Onde se encontra o oriente, o leste distante daqui, onde o sol se levanta, e nasce que, ironicamente, não é aqui do meu lado, senão do teu. Aproveita o sol, primeiro, que depois ele chega cá: nasce para todos, afinal.

24 de agosto de 2017

Coqueiro só


Coqueiro só. Ali, contemplando a beleza do mar de Jatiúca, na cidade de Maceió. Foi hoje, o vento balançava o topo, sua copa; ele partia quase ao meio a paisagem paradisíaca, desabitada naquelas proporções de um por um da fotografia. Ondas mansas, a maré rasa, o céu azul, pincelado com o branco das nuvens repousadas sobre o horizonte. Até onde a vista alcançava. Os corais enegreciam o azul turquesa que se misturava ao verde esmeralda num balé de cores, que o concreto da calçada, passadeira sem passante, completava o visual do fim da manhã.
Coqueiro só. Ali, fazendo sombra para ninguém, fazendo sentido para a areia que recebia todos os raios quentes de um dia soalheiro. Alguma coisa nesta paisagem tinha de fazer sentido. Pelo menos aos olhos que se entremetiam, como pronomial verbo de servir de estorvo para a calmaria toda deste dia desperdiçado à espera de que os olhos recebessem qualquer sinal de conflito: poderia ser a chuva repentina que faz dias caem sobre a capital alagoana ou poderia ser o dilúvio que se espera para terminar diluído em águas mornas os matizes plangentes da alma.
Coqueiro só. Aqui, sem frutos a dar, sem coco para atirar sobre as cabeças de quem por baixo caminha e, acidentalmente, tem uma rajada da natureza: com sol, com coco, com chuva, com qualquer esperança que caia de cima, do céu. Um descrente que nunca espera do acaso motivo para ruptura de paisagens tranquilas.
Coqueiro só. Aqui, só, vai estar. Só aqui também faz sentido, diante deste mar bonito, diante deste azul infinito. Mas o coqueiro continua diante de tudo isso, e só. Imóvel.
Coqueiro só. Não vai longe, não vai a lugar algum. Posa para uma fotografia, no máximo, a fotografia que paralisa o tempo, que corre o mundo, mas o coqueiro segue sozinho esperando que sua sombra dê sentido para algum passante que encontre sob ele o descanso de seus conflitos.
Coqueiro só. Coqueiro que tomei para mim metáfora que, dentro desta beleza quadrada da fotografia, tem mais a dizer de quem o fotografou do que de si mesmo. Às vezes as coisas dizem mais de nós do que delas mesmas. Mas há uma diferença entre o dito - quer na imagem, quer nas letras - e o que realmente se cala. O coqueiro calado que segue só e eu me aproprio a dizer dele e de nós.
Coqueiro só. De hoje. Maceió

22 de agosto de 2017

Assim seja

Olha bem teu último desejo, meu bem:
Que a noite esteja sendo proveitosa
Com a dedicação e empenho que tenho
Em tudo o que eu faço...

Eu não faço questão da noite
Faz dias.
Eu não faço dos dias, viagens e festas.
Eu nunca estive em tuas festas.
Talvez nunca estarei.
Elas não cabem em mim.

Faço da noite uma centelha
De esperança ou coisita mínima
Até por prazer em beber água gelada, a mais fria.
Fumar um cigarro, cuspir o lamaçal
Quando a água gelada se juntou à terra baldia.

Terreno abandonado, sem dono,
Sem alvará de construção.
Sem sombra de dúvidas, o espaço ocioso;
Meu ócio é tua lacuna para o lado vicioso
De quem na terra sob os pés sente e firma verdade,
Senta e se vicia no simples "só não demonstro".

Eu não estarei em tua festa,
Não estarei no fim de semana de páscoa.
Sem dias santos, só infernais.
Dia branco, madrugada adentro
Quaisquer horas são irreais na periferia
Olha no centro do umbigo,
Uma vez mais e apenas te divirtas.

Pois não há plano:
Quando não há prova,
Não tem mais engano,
E tudo se renova
Quando o copo vazio cai, parte,
Os cacos vão ao lixo
Antes que corte a mão de alguém.

Terreno baldio é lugar de ninguém.
Fica, assim, com a lacuna, meu bem
E abriga nela uma nova religião.
Devota-te à santidade - teu zelo? -
Basta, para isso, dizeres amém!

21 de agosto de 2017

Titã


Matosinhos, 12 de dezembro de 2016.

Quase oito hora e trinta minutos, a praia estava escura, o vento frio. Desconfortável e ansioso pelos próximos dez dias em que minha mãe fará uma viagem longa e, quando chegar o dia, celebraremos o 25 de dezembro. Comemoremos somente nós dois, em Barcelona, meu aniversário, na noite de natal. Mas já acho que não haverá comemoração naquele dia; comprarei quatro cervejas e uns frios, apenas. No quarto do hotel, beberei e brindarei meus trinta e cinco anos de vida. É o suficiente.
É com o olhar no relógio que eu jamais imaginaria aos 12 de dezembro que, ainda que não tivesse uma festa ou comemoração especial, eu estarei ao lado da mulher para quem em seu próximo aniversário escreverei uma adaptação de Mário Quintana, ao dizer que ela cuida tão bem do seu jardim para que eu volte; que ainda que me faltem asas, ela transporta flores até mim para que eu possa senti o cheiro bom que só o amor materno restabelece, na sensação única de quem nunca se esquece e revigora um dia como esse, por exemplo.
Pois bem, eu estava numa praia fria e escura, decidindo o próximo passo, a nova chance e a recompensa por dias de amor e terror dos últimos cinco que passamos em Sevilha, Málaga, Granada, Salamanca e Bragança. Em fim de viagem, ontem, percebi o quanto a paisagem que os belos detalhes mouros foram encobertos na Fortaleza Vermelha por um desvio de rota, ao me indicar que o destino seria um armário escuro e insolente, onde ficarei guardado feito roupa para festa de casamento. Como se estar ali e gozar de dias fossem um suspiro de sobrevivência e mais um fim que se anunciava. Ontem, cheguei a casa, desfiz a mala, lavei o corpo e deslavei palavras, pouco minutos depois. Hoje, vim deslavá-las tête-à-tête, porque ontem faltava-me coragem suficiente para encarar o que desbotou numa derradeira oportunidade. Pensava como aquela beleza de Alhambra poderia ter se tornado tão inútil por culpa que eu não tinha. Como fracassado, assumi minha rotina de obedecer regras dos ditadores que, na calada na noite, fazem-nas, quando todos dormem com medo, depois acordam para seguir os caminhos entre armas do Exército e a truculência de um toque de recolher. O rumo que o regime incrementa com tamanha crueldade.
Revivi o Salazarismo na década de 1930, quando nem minha mãe, que chegará em pouco mais de uma semana nem era nascida. A tortura de um Estado Novo que não era meu, mas nascia com nuanças de uma pele que cheira bem e nem condizem com os olhos caídos do autocrata revisitado num passar do tempo, num espaço menor, convenientes cinco dias de autoridade repentina. Eu obedecia porque não valia a pena um conflito daquele longe até da casa que não era minha, que eu aluguei por cinco meses, bem longe do Brasil.
Mas este dia, agora, esta terça-feira de remissão (de segunda a segunda-feira... quantos dias faltam para o fim do mês?) de longa espera por mudança, de quietude na orla, mas turbilhão nas profundezas de uma praia que, por acaso e ironicamente, chama-se Titan (o soberano, em sua etimologia). Mas o rei, até cair - sejam de espadas, ouros ou paus -, normalmente, é absoluto e dá as cartas nos tempos; e aos templos em que constrói sua imagem, semelhança e todo o autoritarismo, parece figurar-se neste mar arredio diante dos meus olhos. Parece ter vindo à orla, neste banco em que estou sentado e redimiu o pecado sob as bênçãos de seus mitos, os que servem apenas para fortalecer suas regras e amedrontar povos.
Era na Praia de Titan que eu deveria ser o burguês Medieval revolunionário e entrar na Titanomaquia de uma Era atrás, havendo assim de decidir no passado tão distante o qual hoje não seria esta insistente batalha que não precisa chegar a dez anos. No passeio da história, o olímpico traz consigo a puja que aquelas águas frias do mar em Titan já teria desfeito, quem sabe, o próximo agosto.

Imagem: Peter Paul Rubens, "Fall of the Titans," oil on panel, Royal Museums of Fine Arts of Belgium (1637-1638)

20 de agosto de 2017

Embrulhado

Hoje, minha querida mãe faz anos. Eu até já escrevi uma mensagem sobre o amor dela dedicado a mim, sobre amor, enfim... Uma mensagem bonita e verdadeira, porque existem coisas que só o amor faz a gente se expressar de uma maneira calorosa, vívida, berrante de alegria. Foi o único amor verdadeiro que senti até agora nesta vida, aquele que é doação completa, não importa o quê, nem onde nem quando... Ela sempre vai estar ali na tentativa de me alcançar, abraçar-me e sentir o quanto minha vida é importante para a dela. Eu, em vez de retribuir de igual maneira, infelizmente, tenho tentado fugir de lugares, isolar-me no meu canto, não ouvir sua voz. Ainda assim - olha só! - ela entende isso e continua me amando do mesmo jeito. No começo do dia dela, eu escrevi aquela mensagem estonteante, palavras breves, mas era o propósito de dizer pouco e dizer tudo. Aqui na cidade já amanhece, eu não dormi, e também ainda não lhe dei um abraço e um beijo grande, porque ela merece isso todos os dias que eu estiver vivo, mas eu não ajo desta forma. Quase sempre estou seco, escondido nos verbos, com gestos atados, e eu acho que isto herdei do meu pai. Não saí todo à mãe, claro.
Sei que precisamos celebrar esta data querida, apesar de minha mãe ser de uma personalidade que tive dela outra herança, é uma mulher de poucas celebrações. Eu vou comemorar com ela e esconder dela quão dura foi a noite que tive, mais uma noite em claro desses dias. As lágrimas que derramo aqui, ela não merece ver. É que tenho uma ferida aberta... e com todo amor de mãe, sei que ela não terá o remédio. Não quero que ela novamente se envolva neste tipo de ferida. Uma vez, ela se envolveu, há oito anos, quando eu quis sumir, ela me ajudou a sair de casa, quem deu a ideia. Quando fui morar em São Paulo, recém-graduado, cheio de sonhos, ávido por novidades e ainda perdido. Contudo, minha mãe precisa ficar longe desta ferida, desta vez. Portanto escondo essas noites de lágrimas e dor dela, como posso. Como não consigo enganá-la, ela sabe que não ando bem esses dias, e sempre pergunta preocupada se vai tudo bem. Tenho que discorrer sobre as coisas boas, sobre alguns planos, e jogar toda a desculpa da parte que lamento na situação política por que passa o País. Neste âmbito, conseguimo-nos, uma vez que minha formação ideológica tem muito do que ela me ensinou, dos valores que passou. No entanto, ainda há outra ferida aberta. Que minha mãe não saiba dela por ora! Uma mãe jamais quer ver o filho chorar, como tenho chorado nos últimos nove dias que antecederam seu aniversário.
Percebo que minha ansiedade não dá para esconder. Não dá para esconder o temor de um futuro para o País, não consigo disfarçar também as frustrações com o trânsito, com o tempo, com o desrespeito na fila para pagar boletos. Não encontro também onde ocultar-lhe o preço do pão, a inflação, as dores dos meninos que dormem na esquina aqui da rua. Não posso fazer este lugar mais bonito, enfeitado com pétalas de rosa para quando ela passe se acendam luzes e toque uma canção de que ela goste. Não é fácil poupar a mulher mais especial deste mundo de ver este mundo com olhos de mãe. Contudo ainda dá para esconder esta ferida aberta, porque felizmente, ela está dentro de mim. Sorte a minha: pele não é embrulho de presente; sorte a minha que embaixo dela está a ferida que minha mãe não pode ver.

19 de agosto de 2017

Edição de Sábado

Quando eu saí às 14 horas e poucos minutos para comprar o coentro, principalmente, pois eu tinha pouco na geladeira, e precisava ressaltar um dos mais saborosos ingredientes da vida, eu fui a passos lentos apreciando aquele caminho já conhecido. Na fila para pagar as pequenas compras, encontrei um antigo companheiro de trabalho que largou também suas pequenas compras para um aperto de mão. Numa breve conversa, nos despedimos cordialmente para seguir no destino do sábado. Então tracei o percurso de volta mais apressado, parecendo que a revolta que eu tinha em mim queria sair, como tem saído aos poucos, e se debruçar na rua; em seguida, esperava que todos os carros também apressados passassem por cima dela e a esmagassem, ali, para sempre, no seu findar. A massa, à espera em casa, estava descansando por quase 1 hora, e eu levava o que faltava para o ingrediente do recheio. Já tinha o guacamole feito, e faltava o frango que já tinha cortado às tiras para cozinhar e virar os deliciosos burritos que planejava para meu almoço tardio. Foi neste sábado que eu quis revisitar a culinária mexicana, desse país que tanto aprecio os sabores. Economizei na pimenta, já que a gastrite anda atacada esses dias. Já na cozinha, cortava os talos e folhas, picadinhos, com a força do pouco que ainda resta da minha fúria, que, às vezes, parece maior, mas é só a intensidade naquele momento.
Tudo pronto, meu almoço solitário às 15h30, em que devorei com ansiedade, dando-me ao luxo de escolher mais um subterfúgio para poupar a cabeça de memórias picadas como coentro e cebolinha no prato quente de uma tarde mais escura que o habitual. Ah, aquele cheiro bom invadia meu prazer; à boca, eu tive pressa de enfiar tudo e engolir. Eu não queria ter almoçado sozinho. Eu já quase desistia de visitar o México e voltaria aos doces caros que tenho pagado com a língua, as lágrimas e o medo. Alguém, por favor, traz uma tequila para desarranjar de vez meu estômago com as borboletas azuis de asas queimadas! Na verdade esse queimor não me faz muito bem, eu sei, mas às vezes quando queima muito, surge a esperança de que as cinzas deem o desfecho para tudo o que foi colorido. Fim do cheiro do coentro, fim do medo... findem lágrimas! Deixa-me a língua para dizer o bendito sábado novamente terá calma para saborear a comida mais lentamente.
Os restos do almoço tardio ficaram para o jantar, devorei mais uma vez a comida, só que fria. Acho que a frieza combinava com a noite, com o resto de comida, com o resto de tudo.
Uma vez li que todo fim é um novo começo. Comecei a ler o livro de poesias que uma velha amiga me emprestou. Parei acho que no oitavo ou nono poema, pois não é que eles pareciam estar falando de mim?! Como aguento me ouvir tanto, incansavelmente, e não consigo ouvir de mim as palavras de outro, no caso, outra: essa que escreve e que há anos acompanho suas letras?! Eu converso comigo mesmo porque não tenho mais suportado aceitar que alguém pode estar mentindo para mim. Eu converso com todos, sim, mas parece que eu não tenho acreditado mais em nada. Enquanto as coisas estão foram de alcance, o irreal é uma fantasia maravilhosa. Só tem um problema nisto tudo: o mesmo que me levou um dia a fazer a faculdade de jornalismo. Não consigo conviver com coisas irreais por muito tempo, eu entro no túnel, invento palavras, investigo qualquer fonte (gestos, silêncios e meias palavras) até eu encontrar e amarrar a história, que pode vir a ser manchete.
Na verdade, tenho uma conversa guardada para os próximos dias. Talvez seja ela o atual motivo da minha ansiedade. Talvez essa conversa nem faça sentido. É vontade de notícia, enfim. Tenho que acreditar em alguma coisa, ainda que seja um buquê de ramos de coentro. Vou comprá-los para me presentear em qualquer outro sábado que precise de mais sabor e menos notícias.

18 de agosto de 2017

Peixe morto

Já faz tempo. Uma semana. Nesta e na outra, o outro foi eu mesmo.
Eu fui quem não sou, pescador, há uma semana.
Rede das linhas imaginárias, traçadas da maneira que a desconfiança pedia.
Parece que foram malhas da rede que tecia sozinho para pescar.
Foi a isca mais caluniosa; foi o peixe que morreu com sede na boca.
Era a sede marinha, a escassez de mar aberto.
O sal desidratou quando fechou ali a rede, enroscada na semana,
E se prenderam os sete dias para, ao oitavo, descansar.

Sabe quantas horas descansei numa semana?
Todas as que estive diante de mim - o outro que fui -;
Eu jamais seria o mesmo por mais que dias descansasse.
Mas há dias que a fome é tão grande
Que coitados os cardumes enfileirados,
Presas infinitas, limitadas a serem peixes e não nadar!

Ficam todos a se debaterem fora d'água
E parecerem nadar e não há água.
São linhas e linhas tecidas,
Armadilha que pescadores há muito mais que uma semana
Fazem o instrumento consumir e arrastar.

A próxima embarcação que saia daqui para as milhas distantes
Transporão o frio entre as escamas arruinantes.
O corpo cravado por espinha entalada garganta adentro,
Afogará qualquer último suspiro
Sem asa, sem perna, sem pata, sem pena
Da guelra desfalecida no peixe a boiar.

6 de agosto de 2017

Triunvirato

A palavra "triunvirato" tem origem na justaposição de dois radicais latinos: "trium", cujo tradução é o numeral três, e "vir", que significa "homem". A associação política firmada por três homens em pé de igualdade remonta a República Romana, em que, por dois períodos, conhecidos como Primeiro e Segundo Triunviratos, designaram uma aliança entre três personalidades para unir forças e governar a supracitada localidade.
Mais tarde, na história mundial, os soviéticos também instituíram o governo de três membros: a Troika. Não sei ao certo se isso evoluiu para o que hoje conhecemos, no Brasil, como os Três Poderes, em nosso exemplo republicano nacional, chefiados pelo Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
Como interessado por política e literatura, decidi adaptar o Triunvirato para tomar as rédeas desses meus dias e instituir meu poder, de modo a conciliar a igualdade entre três homens de mim para que restaurem a força necessária a me governar.
Decreto, assim, que o homem que fui, este que sou e o que pretendo ser se unam a fim de equiparar-se à importância que todos eles têm, agrupem-se e instaurem a Lex Titia nesta vida até agora desgovernada.
Faço isso ao perceber que há algum tempo tenho me queixado de algumas perdas, que se somam aos rastros derramados no solo de desesperança que trilhei à mercê da minha própria sorte e de outros governos que se impõem sobre mim. Em contrapartida, existe em mim uma necessidade grande de ter tudo sob controle, portanto me sinto por muitas vezes transtornado quando algo está fora dos meus radares e dos meus olhos sonolentos. Por ter esta necessidade de controle, abro mão do que não confabula com minhas decisões ou mesmo se contrapõem a elas. Cometo erros constantes em esperar a soma, contabilizando tantos debêntures, que só aumentam minha dívida com meus credores. Como aprendi, não consigo dominar também as economias, e me perco entre estes números deficitários que, com o juro da ilusão, deixaram prejuízos inestimáveis. Peço perdão a terceiros: pagarei quando puder, pois que devo e não nego.
Quando comecei a fazer uma auditoria nas contas, vi que os grifos em vermelho tomavam toda a atenção dos meus olhos; passei horas reparando nos danos, mas não os pude reparar. Foi, então, que me esqueci das conquistas de anos de suor derramado, trabalho árduo de um gestor que andava perdido com intentos que prevalecem na zona do ocaso. Tornei-me, assim, e inclusive, uma persona non grata.
Como eu pude esquecer, entre achados e perdidos, o que fora cativante, o que até agora me chama pela consequência da responsabilidade que congregamos com esses agrados? O homem que fui ressurge, por fim, com a força de uma reparação, eliminando as pontas soltas, conectando os fios de acordos, só comigo e com os meus.
Quanto ao homem que sou, nesta posição de líder ocasional que se revela, desvela o oportuno, incluindo apenas bons e necessários tempos de agora. Condensa a matéria que, no calor desta República, derretia dia a dia, virando líquidos e escoando para galerias que só levam ao destino que por tanto tempo me prenderam equivocadamente a atenção.
Aceitei solidificar o que é matéria de verdade, palpável, quer seja nas mãos, quer na mente, onde dedos e memória têm todo o jeito valerem-se. Quando o homem que serei for aparecendo nas minúcias de todo este trabalho conjunto, vai refletir a esperança que só pode contar com o que os três, juntos, controlam. Quem sabe eles serão o próximo chefe de Estado: sólido. Pois o que era líquido já me escapou faz tempo, e o que é vento nunca vai preencher a barriga deste povo. Deixa-me então povoar e concretizar a nova política, porque até as minhas palavras já não estão tão mais convincentes quanto o poder do suspiro que agora eu me dei conta.

1 de agosto de 2017

Polígono

Fomos dois vértices.
Agora sou linha divisória de vertentes.
Que resta é a forma que dou
À zona de perigo onde estou,
Na minha menor porção possível.

Deste plano que fui, 
Desta face que deste,
Deste lado de cá;
Do tamanho imprevisível,
Que outrora era simétrico.

Dentro daqui, um conteúdo:
Vácuo, graúdo, vazio espaço.
Observo, assim, recuado
O que me foi dito, de bom grado.
O cubo nunca será ao quadrado!
E sujeito do lado é quem ficou.

Uma vertente única,
Ficou unilateral
Ficou aquele calado não
Ficaram confusos os graus.

Euclides me disse
Onde estes dois estarão.
Porque o ouvi falando em grego 
Sobre mútua inclinação.
Fosse "boa glória", dar-me-ia 
Euclidiana teoria à vida.

Somos esta região angular?
Indago, interlocutor, 
Eu faço, do quimérico
E das tripas, coração.
Fazes da minha causa...
Pausa.
Quão me aparas
Quando sou aresta!

Já quanto tempo faz...
E tempo, mesmo, jaz
Naquela interseção.